Pelo padre José Júlio Rocha
Isabel I de Inglaterra (1533-1603), com o estranho cognome de “Rainha Virgem”, reinou durante os conturbados anos da reforma anglicana, já que era filha do incontornável Henrique VIII. Entrou em violentos conflitos diplomáticos com Roma e com países católicos, como a Espanha (e Portugal) do também incontornável Filipe II. A perseguição de Isabel I contra os católicos é uma das páginas mais cruéis da história humana. O Papa enfrentou-a e defendeu a Igreja contra a poderosa influência da monarca inglesa que humilhou a Armada Invencível.
É por esse tempo, ou um pouco mais tarde, que aparece uma mulher extraordinária em Inglaterra, Mary Ward, católica e vítima de perseguição por parte dos anglicanos, fundadora do Instituto da Bem-Aventurada Virgem Maria. A intuição de Mary Ward era simples: dar à mulher os espaços apostólicos utilizados pelos homens, à exceção das ordens sacramentais. Suprimir a clausura (que era, então, o destino das congregações femininas), serem, de alguma forma, também elas, missionárias, poderem estudar como as congregações masculinas, poderem governar-se a si mesmas, obedecendo ao Papa, mas sem a jurisdição do bispo, como muitas congregações masculinas, especialmente os jesuítas, onde ela se inspirou.
A reação do Papa Urbano VIII foi brutal. Em 1631 promulgou a bula “Pastoralis Romani Pontificis”, onde se pode ler o seguinte:
Decidimos e decretamos, com autoridade apostólica, que a pretendida congregação de mulheres ou virgens chamadas “Jesuitisas” e os seus modos de vida e estado são nulos e inválidos desde o princípio, e sem nenhuma força nem valor. Com a mesma autoridade suprimimos e extinguimos de raiz e completamente, submetemos a perpétua abolição e inteiramente apagamos e abrogamos, e queremos e mandamos que por todos os fiéis se tenham por suprimidas. Ficam privadas completamente de seus ofícios e cargos, e mandamos, em virtude da santa obediência e sob pena de excomunhão maior, que ditas mulheres ou donzelas vivam separadas umas das outras, fora dos colégios ou casas que até agora habitavam.
Mary Ward foi presa e encarcerada em Munique. Obedeceu sem resistência.
Porquê essa “excomunhão” violenta? Porque eram mulheres. Só por isso. Em rotundo contraste com o antecessor Urbano VIII, Pio XII considerou Mary Ward “mulher incomparável”, João Paulo II chamou-a “peregrina da esperança” e Bento XVI declarou-a “venerável”. Hoje em dia, a esmagadora maioria das congregações femininas usufrui de todas as pretensões de Mary Ward e muitas mais. E, no entanto, Joana d’Arc foi considerada herética por ser mulher, Teresa de Ávila suspeita pela Inquisição por ser mulher, e o rol de exemplos não acaba aqui. É impossível não olharmos para certas páginas da História da Igreja sem constatarmos, com certo desgosto, que ela sofreu de uma certa misoginia e promoveu essa misoginia. Mas uma coisa são as circunstâncias históricas, outra é o hoje. Devemos dar o débito à história, não olhá-la com os olhos e os conceitos de hoje. No entanto, a história é a memória do futuro, é a grande mestra que nos dá lições de como fazer e não fazer. É por isso mesmo que temos hoje muitos instrumentos para corrigir os erros do passado, não voltar a cometê-los, até porque a situação da mulher na Igreja, ainda hoje, onde dois terços dos praticantes são mulheres, está eivada de preconceitos.
Em 1906, o quase insuspeito São Pio X escreveu, na Encíclica “Vehementer”:
A Igreja é, pela sua natureza, uma sociedade desigual; compreende duas categorias de pessoas: os pastores e o rebanho. Só a hierarquia move e dirige. O dever do rebanho é aceitar ser governado e cumprir com submissão as ordens de quem o rege.
Já na altura estas palavras chocavam um pouco. Imaginem hoje, até porque as coisas ainda continuam mais ou menos parecidas, apesar do Concílio Vaticano II. Ora, tendo em conta que a hierarquia (os pastores) é reservada exclusivamente aos homens, às mulheres, como a parte grossa do rebanho, compete aceitar com submissão as ordens de quem rege. É esse lamentável clericalismo, criticado veementemente por Francisco, que ainda escurece a imagem da Igreja, não como sociedade hierárquica, mas como Povo de Deus, onde os leigos têm a mesma dignidade dos pastores. Não é possível continuar a dar aos leigos o papel passivo e meramente obediente no século XXI. Foi isso que pôs as igrejas cheias de bancos e vazias de crentes.
Antes de falar do acesso das mulheres às ordens sagradas é necessário pensar primeiro no papel do leigo dentro da Igreja, papel ativo nos seus documentos, nos sínodos, nos concílios, na teologia. Ao contrário dos protestantes, cujas famílias tinham uma bíblia em casa e a liam todos os dias, aos católicos foi vedado o acesso às Escrituras (a Bíblia só foi traduzida para vernáculo muito recentemente) por medo à cultura do leigo. Perdemos. É de louvar a Ação Católica e os grandes movimentos laicais que, no entanto, só apareceram no século XX. Muito tarde numa história de dois mil anos.
Há dois mil anos um homem pediu água a uma samaritana quando era proibido falar com mulheres desconhecidas; deixou-se tocar por uma hemorroísa quando não se podia tocar numa mulher impura; permitiu que uma pecadora lhe tocasse, lhe lavasse os pés, escandalizando os comensais; desarmou completamente os apedrejadores da adúltera; rejeitou o preceito de Moisés que declarava apenas ao homem o direito ao divórcio; tinha muitas mulheres que o seguiam e eram suas discípulas, desde Maria Madalena a Joana, a Susana. Marta e Maria acolhiam-no em sua casa.
Esse homem rebentou com um número imenso de preconceitos e leis que reduziam a mulher a um mero objeto de trabalho no lar e de geradora de prole. A Igreja existe por causa dele. Adora-o, tem-no como o máximo exemplo e até se chama “corpo místico de Cristo”.
Há muitas Mary Wards por essa Igreja fora. Não as esqueçamos só por serem mulheres.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio