Pelo padre José Júlio Rocha
Para Sun Tsu, o chinês autor de “A Arte da Guerra”, quinhentos anos antes de Cristo, a guerra era uma arte que tinha a paz como objetivo primeiro. E isto faz-me pensar que, no fundo, a humanidade sempre acreditou na guerra. Ela não passa da continuação, por mãos humanas, da lei do mais forte, a lei mais “lei” da natureza, necessária para a sobrevivência do indivíduo e da espécie, que leva as espécies mais fortes a dominar, senão a destruir, as espécies mais frágeis. Quando atiramos uma pedra-pomes contra uma de granito, não é espectável que a pedra de granito se parta com pena da pedra-pomes. Da mesma forma, não vamos esperar que um leão fuja da impala com pena da espécie, nem esperamos que, na próxima ronda da Taça de Portugal, o Benfica venha à Terceira com vontade de perder com o Lusitânia só para lhe dar a oportunidade de vencer um troféu que os encarnados já ganharam tantas vezes.
Podemos dizer que a guerra é conatural à condição humana? O número de batalhas e guerras que já se travaram desde que o homem é homem parece indicar que sim. O curioso é que eu vi há dias, num mapa, todas as batalhas de que há conhecimento nos últimos 4500 anos: mais de 60% aconteceram na Europa, o berço, dizemos nós, da civilização. O poder! Eis o busílis da questão. O poder, o inexorável poder, a estratégia do domínio, ninguém quer perder. A guerra é a última e mais refinada exaltação do poder. Poder é viver. Ou podes ou morres.
A mensagem de Jesus Cristo remete a guerra para o lugar do absurdo. Será a Sua mensagem contra a natureza humana? O certo é que um dos maiores inimigos do cristianismo, Nietzsche, que distinguia a “moral dos senhores”, verdadeira, da “moral dos escravos”, falsa, assinalava que a maior característica do verdadeiro homem era a “vontade de poder”: o homem só se realiza dominando, vencendo, destruindo os fracos, que devem – moralmente – ser destruídos, tornando-se, assim, o super-homem, lei para si próprio. A conclusão de todo este pensamento chama-se niilismo: o nada como destino. É aonde a guerra leva: ao nada. Ao aniquilamento de homens, de inocentes, de princípios, de condições de vida, de tudo. A anatomia da agressividade humana, a sua natureza, não podem ser um destino imposto. Ao contrário dos outros animais, o homem tem uma dose suficiente de massa cinzenta para concluir que a guerra é um absurdo, que a Nietzschiana vontade de poder é outro absurdo e que o homem tem a capacidade única de transcender a sua natureza animal e de construir aquela coisa em que os neurónios contradizem as hormonas: a paz.
Durante o conflito causado pela invasão da Ucrânia, a esposa de Zelensky já nos veio pedir mais do que uma vez a que não nos acostumássemos à guerra. Sim. Já nos acostumámos. E a guerra gera guerra. Já se falava da possibilidade de algum país em conflito pudesse aproveitar essa guerra para iniciar outra, muita gente preocupada com a China e Taiwan. Foi no Médio Oriente, nesse barril de pólvora nunca desativado, nesse ódio cuidadosamente acarinhado nos últimos decénios, que aconteceu o que se esperava e temia. E com um ataque terrorista cuja desumanidade chegou ao ponto de alegadamente se ter decapitado crianças. O certo é que, nas próximas semanas, enquanto morrem inocentes, a opinião do mundo se vai dividir entre os que condenam o “Hamas” e o terrorismo islâmico e os que condenam os abusos do estado de Israel que, nos últimos oitenta anos, reduziu um povo inteiro a uma espécie de escravatura, tolerada no ocidente onde os EUA impõem a força das suas razões.
Para mim, a guerra é a estupidez humana elevada à sua potência perfeita. Tenho cada vez menos possibilidade de suportar os majores-generais que, nos nossos ecrãs, vão desabando sentenças sobre as estratégias e opções bélicas dos países, perante a perturbante impotência do mundo que quer a paz. Tira-me o sono, e eu, por vezes, sinto necessidade de “voltar para os braços de minha mãe”, como canta Abrunhosa, esses braços aonde todas as angústias tinham a solução perfeita.
Talvez o contrário da guerra não seja a paz mas seja a mãe. Ainda me recordo de, no início dos anos setenta, antes do fim da Guerra Colonial, ter acompanhado minha mãe numa procissão de velas ao sítio do Recanto, enquanto se cantava a Maria, a Miraculosa Rainha dos Céus, que viesse trazer à terra os filhos de todas aquelas mães que rezavam pela paz. Nenhuma palavra diz tanto contra a guerra como “mãe”. Contra essas guerras estúpidas e contra as guerras que travamos cá dentro.
“Quantas vezes me sinto perdido no meio da noite – canta Roberto Carlos – Com problemas e angústias que só gente grande é que tem.” E acrescenta: “Quando eu era criança podia chorar nos seus braços, e ouvir tanta coisa bonita na minha aflição.” E hoje, mãe, que já tens mais de oitenta, és tu que precisas dos meus braços e das minhas palavras bonitas. E, no entanto, Conceição, era aí, nos teus braços de mãe que eu não tinha os medos que hoje em dia me fazem as noites crescerem como fantasmas. Pois, pois. Tenho às vezes vontade de ser novamente um menino.
E enquanto o mundo vai pomposamente hipotecando o seu futuro, enquanto os adultos hipotecam a saúde com noites sem sono, chego facilmente à conclusão que minha mãe percebe muito mais da guerra do que Sun Tsu ou os majores-generais que, nas nossas televisões, palram sobre técnicas, táticas, estratégias e vitórias da guerra. Para ela, a guerra é o “caos, a maior das tristezas, onde as pessoas se matam umas às outras e os inocentes são os primeiros a morrer.” E minha mãe sabe que há muito mais estátuas a homens que ganharam a guerra do que a homens que ganharam a paz.