Pelo Pe. Teodoro Medeiros
Seria injusto cair em generalizações infelizes quando se fala de cinema americano: dos (clássicos como Ford ou Houston), à idade de ouro, aos revolucionários (sim Scorcese e Coppola), ao renascimento do gangster movie (Tarantino e os seus imitadores), até se chegar à falta de imaginação a que se assiste hoje, há muito valor a descobrir.
Entre o bom está David Mamet, o escritor de teatro e ensaísta que também adapta, escreve e realiza. Quando começou no teatro, as suas peças faziam franzir o sobrolho: abuso de linguagem escatológica (não no sentido teológico) e uma aparente ausência de trama eram marcas de estranheza. De início, nem o público aderiu.
Mas ele era prolífico e foi ganhando notoriedade, sobretudo com a reescrita do argumento para “O carteiro toca sempre duas vezes”, com Jack Nicholson. Em 1983, a peça “Glengarry Glen Ross” granjeou-lhe o Pulitzer e a consagração junto das audiências nos 2 lados do Atlântico. Em 1987 realizou o seu primeiro filme, “House of Games”.
Essa primeira obra tem já um dos seus atores de eleição: o subvalorizado Joe Mantegna. Outras grandes marcas estão lá também: muitos diálogos que nos dão a conhecer as personagens, câmara com papel eficaz mas discreto, a capacidade de abordar qualquer tema com originalidade. E sobretudo a primazia de pessoas que nos surpreendem. Talvez por isso lhe agrade tanto a traição e as suas figuras se encontrem tantas vezes em grandes encruzilhadas morais.
Uma surpresa do seu cinema é a de conservar uma certa teatralidade: nunca tão óbvio como neste filme, em que uns personagens falam em segredo mas sem terem medo de serem ouvidos. O efeito conseguido é o privilegiar da relação direta com o espetador, um recurso não negligenciável. E que recorda que a arte não é simples mimesis da realidade mas comunicação.
Entre os seus melhores filmes estão “Brigada de Homicídios” de 1991 e “O Caso Winslow” de 1999. O primeiro põe Joe Mantegna na pele de um polícia que tenta resolver um caso importante quando, de improviso, lhe cai no colo um outro que a que ele resiste de início. O resultado é menos um jogo de construção de uma trama sinuosa e mais o retrato de um processo de redescoberta de si mesmo.
Mamet demonstra ser um original contemporâneo que mantém um pé no clássico: trama de resolução ou de revelação? Para quê escolher, quando o segredo está em unir as duas, como dizia um velho companheiro destas andanças, de seu nome Aristóteles? Daí que as origens judaicas sejam exploradas com sensibilidade, além dos lugares comuns que se veem em tantas obras bem intencionadas.
Aprendemos então que existia o grupo nazista Grofaz, decidido a eliminar os judeus e a evitar qualquer sua mistura com os brancos. Porquê Grofaz? Porque era uma sigla pela qual o próprio Führer foi conhecido (“o maior estratega de todos os tempos”). Baste dizer-se que a solução para o primeiro caso se deverá a uma traição e que, numa ironia amarga, o mesmo se aplica ao próprio protagonista na solução do segundo. Sublime.
Há aqui algo do cinema artesanal de Herzog, embora menos poético no que às imagens diz respeito. É dado aos personagens tempo de respirar até que ao vê-los vejamos a condição humana. A ambiguidade moral habita-os e é apresentada sem timidez mas também sem excesso, porque a subtileza importa. O processo é lento e desprovido porque quem vê deve fazer o seu próprio trabalho.
E com isto chegamos a “O Caso Winslow”, um bem conseguido retrato de época da Inglaterra à beira da Primeira Guerra Mundial. Um honrado chefe de família leva a tribunal o colégio que expulsou o filho por um suposto furto. Por detrás deste leitmotiv esconde-se no entanto uma análise profunda aos temas da honradez, o orgulho, a teimosia, o bem familiar e social, as motivações inconscientes.
Os tiques burgueses são apenas uma das atrações do filme: serão passados em revista os estereótipos masculinos, a política e a ordem social e praticamente todas as dimensões que uma família comporte. Trata-se de uma obra-prima da observação, um filme definido pela fineza do seu humor e pela habilidade de entrecruzar várias linhas narrativas. Além do mais, a cena da apresentação da sentença final (fora do tribunal) é do melhor que o cinema tem para oferecer.
É este o filme a apresentar quando se pergunta sobre o que é “brincar com as convenções do género”. O sucesso é aqui total: um drama de tribunal que omite quase totalmente o mesmo e insinua sempre mais do que afirma. Cada cena é um desenvolvimento em aberto: não se sente nunca o cumprir do calendário de turno.
As reconstituições anacrónicas desiludem sempre mas aqui não há espaço para isso: não estamos perante pessoas contemporâneas vestidas com roupas antigas mas mantendo as atitudes e palavras de origem. A este efeito não será alheio o facto de muitos dos atores serem britânicos, certamente, mas esse é apenas um dos elementos da equação. Porque há aqui muito bom gosto e nem a criada, por exemplo, tem apenas o papel de figurante (longe disso).
É importante que nos eduquemos de forma adulta naquilo que consumimos: o que comemos, as notícias que lemos, o cinema que vemos. Renegar esse cuidado de seleção é comprometermos a qualidade do que entra em nós e, por consequência, daquilo que somos para nós e para os outros.