Glengarry Glen Ross, a queda da Civilização Ocidental

Foto: Igreja Açores

Pelo padre Teodoro Medeiros

Eis-nos perante uma obra vertiginosa, mas muito bem conseguida. Trata-se da apresentação do quotidiano de uma empresa de vendedores. Estes são pessoas derrotadas, esmagadas pela obrigação de enganar, de qualquer maneira, os potenciais investidores. A honestidade é um conceito desnecessário; a verdade um mito; a sobrevivência profissional uma perpétua sentença a cumprir.

O filme é de 1992, realizado por James Foley, a partir de uma peça de teatro de David Mamet (que adaptou o texto para o argumento do filme). Mamet é um escritor prolífico, realizador e argumentista, além de taumaturgo, além de teórico da narrativa (a sua série de vídeos de ensino de escrita é brilhante). Estes factos indiciam uma realidade: há ideias bem estabelecidas por detrás desta obra.

O conceito chave é o de listas de possíveis clientes (leads), um termo que é usado ad infinitum no filme, uma vez que os donos da empresa despedem todos os funcionários. A proposta que lhes é feita é que se desenrasquem com o que têm (as velhas leads), e que então possam ser readmitidos e ter acesso a leads de qualidade. E nós, espetadores, ficamos envolvidos nesta tensão: quem vai ter sucesso e quem vai falhar?

Jack Lemmon representa o veterano experiente mas pouco adaptado ao novo mundo: o seu personagem vive à sombra das velhas glórias, que só ele recorda, enquanto todos o consideram acabado. Ele precisa urgentemente de fechar negócio, a filha está no hospital; as suas chamadas telefónicas aos compradores são o equivalente linguístico do ato de rastejar atrás de alguém: ele soa confiante, mas alimenta-se do mais puro dos desesperos.

Al Pacino faz o que bem sabe fazer: representa o tagarela convencido, o vendedor de sucesso que está muitos furos acima de todos os outros. O que ele oferece ao cliente não é um negócio, mas uma experiência, a do encontro com um filósofo, um conselheiro, um amigo, um psicólogo, um encantador de seres humanos, um mestre da arte do engano, um crápula cheio de classe.

Todos os outros são escravos do sistema, ao passo que Ricky Roma (Al Pacino) é o número um. É uma primeira leitura simbólica quase obrigatória: o capitalismo é como a monarquia, alguns eleitos; uma massa de arraia-miúda, o mexilhão. Mesmo assim, seguindo Mamet, o teórico, esta é uma narrativa forte, uma vez que o número um também apresenta vulnerabilidades (se assim não for, nós perdemos o interesse na estória).

O omnipotente Ricky também conhece o insucesso, embora por interposição alheia, já no terceiro ato. Ele assegura a um cliente que quer desistir do negócio que o seu cheque não seguira para o banco, estava tudo bem. Na realidade, o cheque estava ainda no escritório, pelo que uma ida certa do investidor ao banco deitaria tudo a perder. E, com efeito, um funcionário diz ao mesmo cliente que este já fora depositado, que ficasse tranquilo (uma gaffe fatal). O que aprendemos é que o número um é, também ele, humano afinal, e é isso que nos permite ter simpatia para com este mentiroso, e apreciar os insultos que dirige a quem lhe estraga a festa. Sim, a vida está cheia de contradições, vitórias e derrotas: todos podem falhar, de vez em quando, inevitável numa estrutura social flamívoma.

Se algum defeito se pode apontar ao filme, talvez seja o seu ritmo frenético e comunicativo: as pessoas falam constantemente, ao vivo e ao telefone, interrompem-se sem parar, não acabam de resolver um problema, ou tema, para regressar a outro que tinha sido, um pouco antes, alvo de interrupção. Mas é uma arte, menos telling e mais showing: conhecemos cada um destes homens ao assistirmos às suas caóticas circunstâncias.

Esta economia narrativa, seleção do primeiro plano narrativo e ausência do segundo, prende a nossa atenção, ajuda-nos a estar atentos, a antecipar as consequências dos atos que vemos. Aqui é tudo bife, não há osso, ou seja, tudo o que não tem a ver com o ponto central foi cortado. E este rigoroso controlo de informação é um trunfo: torna uma experiência (pesada nos diálogos) num exercício de curiosidade.

Glengarry Glen Ross denuncia a escravidão do trabalho, sem dúvida. Aqui, ele é o valor supremo, o princípio estruturante da sociedade, o instrumento único de humanização e reconhecimento, buraco negro da interioridade e dos outros valores (Levine, o veterano, não tem disponibilidade para visitar a própria filha no hospital). Denuncia também o choque frontal entre rentabilidade e ética, obviamente. Mas haverá mais denúncias?

O método narrativo empregue joga com a qualidade de informação que os personagens podem obter: é criterioso, é rigoroso. Nos tempos em que vivemos, este é um alerta essencial para nós que, tantas vezes, digerimos má informação. Dois casos recentes o comprovam, e ambos têm que ver com os Jogos Olímpicos de Paris. Em primeiro lugar, o desfile de abertura: seria a famosa cena representada uma paródia da Última Ceia de Leonardo da Vinci?

Está estabelecido que não, a não ser de uma forma tão indireta e rebuscada que equivale, ainda assim, a um mais equilibrado não. Mas isso pouco conta, a indignação explodiu nas redes sociais, nada a faz calar, a não ser talvez a próxima. Este sintoma de falta de pensamento crítico não devia ser uma preocupação elitista, mas sim do povo. Não nos preocupamos se o que dizemos é verdade ou não?

O segundo caso refere-se a uma pugilista argelina, Imane Khelif, acusada de ser transgénero, ou de ser um homem, quando na realidade é uma mulher. Bastou que uma atleta, Angela Carini, “denunciasse” a situação: desistiu da luta em 46 segundos, limpou o sangue invisível da sua própria face e declarou que “não é justo”. De nada valeram os esclarecimentos em tantos artigos de jornais e outros meios de comunicação: para muitos, Khelif, que ganhou medalha de ouro, sempre foi e sempre será um homem.

Carini já pediu desculpa à adversária pelas suas palavras, mas, como dizia Orson Welles, não há autoridade tão forte como a ignorância.

 

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