Pelo padre José Júlio Rocha
Ele há nomes esquisitos. Refiro-me à toponímia, a cidades, vilas e aldeias de todo o mundo cujo nome pode envergonhar os seus habitantes. Há uma cidade no Brasil chamada Não-Me-Toque. Cabeça Gorda, Carne Assada, Covide, Deixa o Resto, Filha Boa, Ranholas ou Vale de Azia, são povoados do nosso Portugal que fazem sorrir. Isto para não falar de Carrazeda de Ansiães, Freixo de Espada à Cinta ou Pedaço Mau, em Vila Nova de Ourém e outros, já que a toponímia é uma aventura fascinante.
Eu nasci na Fonte do Bastardo.
Riam-se.
Quando, em Roma, me perguntavam qual era a minha aldeia de origem, cheguei a sentir vergonha de nomear a terra, uma vez que “bastardo” em italiano tem mais ou menos a mesma intensidade de “bastard” em inglês, alguma coisa parecida com filho de alguém pouco recomendável. Dava-me mais para dizer Praia da Vitória, nome pomposo e agradável.
A Fonte do Bastardo é um dos povoados mais antigos da ilha Terceira, nascida no início do século XVI, quando, na encosta sul da Serra do Cume, a meia légua do mar, foram descobertas umas fontes que formavam formosos lagos naquela que, ainda hoje, é conhecida como a Ribeira dos Lagos. Dois pequenos montes, o Pico dos Vieiras e o Pico da Bagacina, que já hoje não existe, por detrás do salão da freguesia, explodiram antes do povoamento, lançando lava pela encosta abaixo, formando uma terra de “biscoito”, lava preta, que hoje forma a belíssima freguesia do Porto Martins. A primeira referência é às “fontes do bastardo”, de uma água pura e rica que brotava da encosta da serra, aonde vinham, em peregrinação, as populações da Praia e de São Sebastião à procura da melhor água. Cedo se construíram casas naquela encosta da Ribeira dos Lagos e, a meados do século XVI, já havia setenta casais no lugar da Fonte do Bastardo. A igreja, nesse tempo, ficava longe das fontes, num promontório vizinho ao Pico da Bagacina. Era dedicada a Santa Bárbara, imagem do século XVI, obviamente roubada há trinta anos, sabe-se lá por quem. Essa igreja foi destruída por um sismo, restando a capela-mor e o cemitério que lhe ficava em frente. Celebrou-se missa, durante muitos anos, na ermida de São José, no fim da freguesia, ate esta ser, também ela, destruída por um sismo em 1801. Voltou-se à velha igreja em ruínas. Restava apenas a capela-mor, que ainda hoje é ermida em frente ao cemitério antigo. Durante cem anos celebrou-se a missa nas ruínas dessa igreja. Em 1876 começo a construir-se um templo enorme, na boca da Ribeira dos Lagos, cuja construção ficou pela metade, dados os custos da obra: 22 mil réis tinham dado só para metade quando, segundo o padre Jerónimo Emiliano de Andrade, a imponente igreja das Cinco Ribeiras tinha sido construída apenas por 9 mil réis. Só em 1904 a igreja imponente abria ao público, com a preciosa ajuda de um brasileiro torna-viagem, o senhor Francisco Soares de Oliveira, natural da freguesia.
A Fonte do Bastardo é pioneira em muitas iniciativas, desde o primeiro moinho de vento da Terceira à primeira praça de toiros, da primeira tourada com gaiolas às primeiras camionetas de carreira entre Angra e Praia, desde a primeira debulhadora, em 1935, à primeira cooperativa de consumo, em 1975. Desde o salão de espetáculos, obra de Mateus Leal, à equipa de vólei que já ganhou campeonatos. A Fonte do Bastardo orgulha-se da Fonte do Bastardo.
Resta saber a origem desse nome. Quem era o bastardo? Eis o maior enigma da história de uma freguesia. Outras sabem perfeitamente a origem do seu nome. Têm nomes de santos, o que, por si só, resolve o problema toponímico, ou têm nomes cuja origem não é difícil de adivinhar: Altares (altos ares), Agualva (água alva), Biscoitos (devido à lava ou bagacina), Feteira (terra de fetos), e as ribeiras, todas contadas, na ilha Terceira. Fonte do Bastardo não se sabe.
Terá sido um filho bastardo de um capitão donatário, de um povoador importante que herdou aquelas terras de encosta e aquelas fontes? Terá sido um nome que apareceu porque era terra de muitos bastardos? Terá esse bastardo sido filho de um rei, de alguém sumamente importante, desterrado para esta ilha por um motivo qualquer? Esse bastardo era um vilão ou um herói.
O nome “Fonte do Bastardo” é, pois, um dos mais enigmáticos dos Açores. Parece até que as nossas origens remontam a tempos imemoriais, quase lendários. Esse bastardo terá sido um herói das guerras de África, na luta contra os piratas, terá sido um rico terra-tenente ou um pobre que desbravou aqueles matos? Quantos filhos terá tido, quantas mulheres amou, nasceu na ilha ou veio de fora? Terá sido frade ou capitão, negociante ou marinheiro, ladrão ou santo?
A questão é simples: ninguém sabe. É assim que nascem os mitos.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.