Pelo Padre José Júlio Rocha
Os domingos de novembro em Roma tinham, à tarde, a aura dourada do sol que se punha, iluminando os edifícios e as montanhas distantes. O ar era mais adocicado e as sombras, por entre as ruas e as árvores, davam à cidade aquele tom único de outono, o vento fresco e seco da “tramontana”, folhas castanhas das árvores a atapetarem o chão das ruas por onde as pessoas caminhavam e conversavam alto, que em Roma fala-se muito. Pássaros, em bandos enormes, desenhavam sombras pontilhadas em movimentos cadenciados e às vezes bruscos, numa algazarra, contra um céu de várias cores. Roma é melancólica em novembro. E tenho essa vaga ideia de que todos os novembros do hemisfério norte são, cada um à sua maneira, melancólicos nos dias que entardecem mais cedo, no frio que paira nesse entardecer, nos olhares das pessoas que já se despediram da luz do verão.
Foi num desses domingos de outono, em novembro de 1992, que três rapazes decidiram dar um passeio de carro rumo ao norte. Um deles era eu, o outro, o Carlos, e o terceiro, o organizador da viagem, o Tolentino. Sim, esse. Éramos rapazes na casa dos 20. E tínhamos um carro à nossa disposição, um velho Fiat Croma, anos 70 ou 80, a gingar por todas as juntas.
Fui eu o condutor. Agarrei-me ao volante e, temeroso, desbravei o terreno pelas ruas de Roma, subindo a Via Aurelia, com o seu trânsito ainda ameno de princípio de tarde. Tomámos o Gran Raccordo Anulare, a grande via rápida de seis faixas que circunda a Cidade Eterna. Daí apanhámos a Autostrada del Sole, que ruma a norte. Cerca de cem quilómetros adiante saímos em Orvieto, velha cidade medieval, situada sobre um planalto, ornamentada com uma catedral admirável. Mais vinte quilómetros e chegámos ao destino.
O carro parou entre casas antigas, num velho e pequeno povoado, quase de uma só rua. Estacionado o Croma, ainda andámos uns bons quinhentos metros até pararmos junto de um precipício. À nossa frente um vale longo e cavado, rodeado de montanhas. Em meio do vale, uma elevação que deveria ter bem cem metros de altura, desde o fundo. E, sobre essa elevação, brilhando sob o sol dourado das quatro horas, uma pequena cidade medieval, com a torre da igreja nas alturas, ostentava aquela beleza rara das cidades abandonadas, e tínhamos a sensação de ter recuado seiscentos anos, a uma época parada na história, esquecida da modernidade. Estávamos diante de Bagnoregio, “la città moriente”, a cidade que morre.
Subimos ao burgo por uma ponte pedonal metálica, que a primitiva tinha sido bombardeada na Segunda Guerra. A única coisa que nos chamava para o presente era a eletricidade, resumida às luzes das ruelas, a iluminar amareladamente a tarde, como archotes de outros tempos. De resto, tudo apelava à idade média. As ruas de terra batida, as casas de pedra, toscas, disformes e absolutamente lindas, a praça principal, um retângulo razoavelmente pequeno, sem vivalma. Vasos de flores, quase sem flores em novembro, prendiam-se pelas paredes abaixo e tudo cheirava a um perfume outonal de folhas caídas.
Dezenas de gatos, gordos, destemidos e simpáticos, ronronavam à nossa volta. Sentei-me nos degraus da igreja, do século XVI, o edifício mais novo do burgo. Fiquei rodeado de gatos por todos os lados. Cinco deles saltaram para o meu colo, juro. Até tenho uma fotografia, já não sei onde está, atolado de gatos ronronantes. A cidade devia ter vinte habitantes. E duzentos gatos.
Erguida sobre um cume de pedra débil, Bagnoregio morria lentamente, uma vez que, das fragas da encosta, caíam, não raramente, pedaços de terra e pedra. Ia-se desfazendo e já parte da muralha não existia. Estávamos na Idade Média.
O Tolentino, já então poeta dos pés à cabeça, vivia aquele passeio como uma viagem ao passado remoto dos cavaleiros e dos almocreves, das gestas e dos frades mendicantes que, descalços, pregavam o amor à pobreza. E conduzia-nos pelas estreitas ruelas do burgo, escuras e vazias, com gatos sem medo a cirandar, preguiçosos.
Na última casa de Bagnoregio vivia um velhote solene que, por mil liras (cem escudos, ou cinquenta cêntimos), nos deixava entrar no seu quintal, onde tinha um pequeno museu ao ar livre, com moedas e vasos etruscos. Desse quintal via-se todo o vale que se estatelava por trás da cidade, ouro e sombras, verde e dourado, imponente e pontilhado, nas colinas, por pequenas aldeias, também elas antigas.
Essa viagem foi uma consolidação da fraternidade. Eu e o Tolentino chamávamo-nos irmãos. Uma das coisas que aprendi com ele foi esse olhar espantado para o mundo, para as pessoas, para as paisagens, que vê mais além do que os olhos. De repente, Bagnoregio não era apenas uma cidade medieval abandonada e condenada a cair aos bocados. Não. Era uma aventura única, o lugar onde nascemos e onde haveríamos de morrer, o nosso castelo, a defender dos ímpetos da modernidade. Bagnoregio, no seu silêncio antigo, era o palco onde se desenrolava o espetáculo inesquecível de uma profunda amizade.
Voltei a Bagnoregio dez anos depois. Já não era a mesma coisa: inundada por turistas, tabernas novas a parecerem antigas, um pouco postiça e artificial, limpinha, limpinha, cheia de flores, mas sem o seu encanto vazio e medieval de abandono. Pequenas motoretas profanavam o chão que já fora imaculado. E eu à espera dos gatos que já lá não estavam. Bagnoregio sem o Tolentino é um lugar como os outros.
Acabei de ouvir a homilia do cardeal Tolentino, na missa do Treze de Maio em Fátima. Falou daquela “abençoada pertença comum, a que não nos podemos subtrair: a pertença uns aos outros, como irmãos.”
Foi então que decidi regressar a Bagnoregio.
*Esta crónica foi publicada no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.