“Fazer Igreja” … “Ser Igreja” Nos Açores Hoje

Setenta destes 480 anos que a Diocese de Angra agora assinala, são o meu percurso de baptizado em Jesus Cristo, sempre vividos em comunidades destas nossas ilhas a que, já como adulto, o meu calcorrear profissional obrigou.

Com compromissos e desfalecimentos; com entusiasmos e uma breve ausência; com o regresso definitivo que o empenho de outros irmãos tornou possível. Afinal o Evangelho sempre nos ensinou que a “fé exige serviço aos outros”, como relembra o Papa Francisco a propósito da leitura do XXX Domingo Comum. E isso não é assim tão complicado como nós, por vezes, imaginamos; aquele desejo manifestado pelo nosso Papa, de beber um copo de água fresca na casa de uma favela do Rio ou, no decurso da solenidade de um discurso, o deixar-se envolver ternamente no abraço de uma criança à vista de tantos cristãos a quem o gesto comoveu, são sinais de entrega e da proximidade tão insistentemente reclamada por ele, que valem um sacramento tão redentor como qualquer um dos sete que o catecismo nos propõe. Creio que é a ausência desta simplicidade humilde de profundas raízes evangélicas, tão arredada dos nossos hábitos, que empurra a Igreja para um amolecimento anémico. Por isso, acho tão apropriada a expressão de Bagão Félix ao dizer que neste nosso tempo, por essa Europa que teima em fingir que não é herdeira do legado do Cristianismo, que há uma enorme abundância de cristãos “descafeinados”. De que eu, paradoxalmente um dos queixosos, faço parte ativa. Com outros leigos e um crescente mas indesejável número de clérigos funcionalizados.

As décadas percorridas não fizeram cair no esquecimento o que foi para mim ser jovem cristão nas décadas de 50 e 60 do passado século quando a Ação Católica mobilizava uma multidão de jovens em encontros que a recordação nos faz parecerem multidões. Os modelos de então, para lá da catequese dominical, ofereciam oportunidades de crescimento na fé que se entendiam como parte integrante do ser pessoa.

Ao evocar esta “praxis” em que a vivência cristã integrava com naturalidade a vida quotidiana, vem-me à memória o destaque que há décadas li em contracapa de um livro em língua francesa de que não recordo título nem autor, em que se colocava a interrogação. “Chrétien: celui qui va à la messe?” Hoje, pese embora a sobrevivência de organizações e instituições com forte marca cristã, a interrogação colocada parece não fazer já sentido uma vez que a resposta quase constitui corolário da experiência que cada um de nós pode observar. Mais grave do que a desvalorização da liturgia como forma de agregação comunitária com uma função importante para cada cristão, é a progressiva perda do sentido do pecado num perigoso relativismo em que a consciência de cada um é a bitola de aferição do que é bem e do que é mal. É certamente um fenómeno que abre caminho a uma sociedade egoísta e pautada pela indiferença.

Esta memoração com laivos saudosistas, não pretende fazer a apologia de um regresso aos modelos de uma piedade fortemente centrada nas famílias que enchia igrejas e salões onde a escassez de sacerdotes nem era suspeitada. Certamente que este “fazer igreja” segundo fórmulas massificadas é hoje impensável. Não é que não lhe reconheçamos as virtudes; apenas a diluição das convicções minadas pelo alastrar de um laicismo hostil ao sagrado, e a imersão num mundo convulsionado e cheio de solicitações para a banalidade, inviabiliza qualquer ideia de uma renovação fundada num regresso a “estas” origens. “Fazer Igreja” hoje tem de passar por um processo em que a identificação dos anseios e aspirações de cada um, e também as suas limitações e constrangimentos, possam encontrar resposta. “Fazer Igreja” hoje tem de ser sobretudo, estar no tempo presente com a vontade intransigente de “ser” igreja pelo testemunho, pelo desassombro, pela convicção evangélica de dispor da única arma que Jesus coloca ao nosso dispor: o amor. E com isto abrir o coração e o espírito à tolerância compreensiva pelo outro. E aqui fala-se do amor na dimensão mais ampla que o conceito abrange,  enquanto emanação de Deus para nos levar aos homens. Mas isto tem de fazer-se também com templos abertos aos fiéis; com igrejas em que o ministério sacerdotal se exprime na mais sublime das suas manifestações do sacramento recebido, que é a celebração diária da Eucaristia; com sacerdotes resistentes ao facilitismo de um part-time comodista, mas sim com uma preocupação pastoral toda voltada para o “seu” povo; com cristãos ostensivamente empenhados no anúncio da mensagem de forma consequente; em suma, na comunhão dos santos vivos em que o povo de Deus – padres, religiosos e leigos – faz uma caminhada tendo Jesus como farol e o culto dos valores cristãos como alimento revigorante.

Ricardo Manuel Madruga da Costa

Investigador

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