Pelo padre Teodoro Medeiros
A influência do cinema japonês no Ocidente é lendária: foi Kurosawa o criador do efeito “Rashomon”, a apresentação repetida de um mesmo evento, sob pontos de vista diferentes; o seu “Os Sete Samurais” deu origem a “Os Sete Magníficos”. Hayao Miyazaki Takeshi Kitano, Takashi Miike e Hirokazu Koreeda tomaram o Ocidente de assalto. Os filmes de Ozu e Mizoguschi são matéria nas escolas de cinema de todo o mundo.
É de destacar ainda o profundo humanismo dos filmes de Kobayashi: estórias de samurais usadas para denunciar injustiças sociais. O seu “Harakiri” aponta-se à opressão de um sistema supostamente baseado no conceito de honra: o forte esmaga o fraco, mesmo quando a razão não está do seu lado. Este tipo de olhar, geral mas introspetivo, recupera-o também Werner Herzog no filme do nosso título, rodado precisamente no Japão.
Não é fácil definir o seu género, mas a solução mais óbvia é mesmo a de “documentário à Herzog”, uma categoria deveras particular de cinema. O realizador bávaro rejeita o conceito de objetividade e filma cenas que saem da sua cabeça, como que a dizer: “Não é assim, mas bem podia ser”. Dizer isto sobre outros seria desprimor: dizê-lo sobre Herzog é descortinar a sensibilidade original do autodefinido “soldado do cinema”.
Em “O Diamante Branco”, o nativo que contempla a cascata através de uma gota de água responde ao realizador: “Não consigo ouvir o que dizes, pelo trovão que tu és.” Em “Sinos das profundezas”, os crentes que rastejam no gelo eram na verdade um grupo de homens embriagados pagos para o efeito. São invenções das quais ele se orgulha. Porque é preciso contornar a verdade superficial dos factos crus: “De outra forma, a lista telefónica seria o Livro dos livros.”
“Família, Romance Lda.” oscila entre a estória fictícia e o comentário civilizacional. O filme parte da realidade japonesa das empresas que alugam amigos e familiares a quem precisa: se há um casamento e o pai da noiva não pode ir, ou um
evento social ao qual não se deve ir sozinho, há um ramo de serviço que provê um substituto convincente. A deontologia profissional só não permite ligação afetiva.
No caso concreto, é nos dado ver Ishii Yuichi, que reencontra a filha, a adorável Mahiro, alguns anos depois da separação da mãe: ela não se lembra do pai porque era muito nova e ele diz-lhe que quer reatar a relação com ela, a sua primeira filha. Na verdade, Ishii é o próprio dono da empresa e foi contratado pela mãe desta para lhe dar conforto. Não nos é dado saber, mas tal contrato será impossível segundo os estatutos legais… um laivo da particular poesia do realizador?
A estória avança, mostra o convívio e a crescente familiaridade entre o pai aparente e a filha confiante: quando ela o vê abraçar um bebé pede-lhe (ciúme? Amor?), um abraço também. Ao mesmo tempo, assistimos a outras curiosidades locais, como os rapazes no parque que fingem ser samurais e encenam combates mortais, os robôs-rececionistas de hotel, os peixes elétricos dentro do aquário.
Não se trata de um retrato frio e caricatural, antes um espelho proposto: quanto da realidade é autêntico? Quanto do que se vive é simulação e pretensão? O Japão retratado surge como um case study de ingenuidade social: não a de acreditar que a mentira é útil (essa é universal, convenhamos), mas que não tenha consequências. Ao fim, quando Mahiro se liga demasiado a Ishii, ele recomenda-lhe uma solução, um outro tipo de serviço da companhia: a encenação do seu próprio funeral.
Ishii deve assim desaparecer da vida de Mahiro. A arte imita aqui a realidade mas reclama para si o maior denominador autêntico: a dramatização expõe os fios sub-reptícios que conduzem a vida. Temos o cinema a olhar a existência como palco e a denunciar as suas maquilhagens, o seu roteiro. Até porque o próprio Ishii descobre que há um luto a cumprir pela operação Mahiro.
Há 30 anos, com efeito, o realizador profetizou que o novo milénio seria a época da grande solidão.