Pelo Pe. Júlio Rocha
Meu pai faleceu a 14 de Dezembro de 2014, vítima de uma doença neuro-degenerativa, que o levou à perda progressiva das suas faculdades físicas e psicológicas ao longo de treze anos. Apercebemo-nos que a questão era grave aquando da passagem do escudo para o euro e ele não conseguia fazer as contas com a nova moeda. A partir daí, de derrota em derrota, penetrámos no mundo difícil da impotência da medicina, da perda progressiva, inexorável, imparável, brutal das faculdades, no mundo da angústia dos familiares, da sensação, por vezes medonha, de que aquela vida, que tanto foi para nós, estava a caminho da morte, lentamente, compassadamente, sem esperança. Cuidar, limpar, lavar, zelar por uma pessoa condenada à morte é dos gestos mais altruístas que se podem atribuir ao ser humano. E dos mais difíceis. Muitas vezes vi e ouvi as lágrimas de minha mãe e, pior do que isso, assisti à angústia de meu pai, quase sempre consciente, apesar da demência, perante o peso que sentia ser para toda a família. O seu último ano de vida, preso a uma cama articulada, aglomerou todos os dramas. Ainda hoje me é difícil conceber o olhar de meu pai, repleto de uma ansiedade até então desconhecida, quando eu estava a sós com ele. Implorava-me, sem me dizer, o fim. Dizia-me com os olhos, quando a mente já não interpretava os princípios cristãos, que esse fim era mais que desejado, não importasse como. Com todo o cuidado que lhe prestámos, a sua vida era pouco mais que um enorme Zero na sua mente (nunca na nossa), que não pude, não posso e nunca poderei compreender como funcionava.
E se eu não tivesse fé, o que pensaria de toda essa discussão sobre a eutanásia? É esse o problema. É por isso que eu não aceito as invetivas simplistas e tribais contra ou a favor da eutanásia, mesmo por parte de alguns membros da Igreja. A eutanásia é um assunto muito sério, a ser debatido com serenidade e não ao nível dos “clubismos”, como muitas vezes acontece no nosso país.
Num artigo bem fundamentado, escrito já há algum tempo, Daniel Oliveira dizia: «Não quero ser prisioneiro de um corpo que me tortura. E se já nada me pode salvar e me resta apenas um sofrimento atroz, quero que alguém me ajude. E que essa pessoa não seja tratada como uma criminosa» (Expresso, 5 de Março de 2016). A eutanásia, num estado laico, não é uma questão religiosa, embora a fé nos dê luzes, nem política, a ser apenas debatida por quem nós deputámos à Assembleia da República para tratar da nossa vida e não da nossa morte. É uma questão humana, que enfrenta o que de humano há mais avassalador: a morte.
Porque é que eu não concordo com a eutanásia? Porque há uma Lei moral que une todos os homens de boa vontade, católicos, muçulmanos, de qualquer outra religião, agnósticos e ateus: é a Lei do Amor. Podemos dar-lhe muitas interpretações, mas numa concordamos: fazer sempre o bem, custe o que custar, e evitar sempre o mal. E infligir a morte a alguém, por mais misericordiosa que ela seja, será sempre um mal, por menos mal que seja. Porque se pode fazer sempre mais alguma coisa para além de desistir da vida. Os cuidados paliativos ainda têm muito caminho para percorrer e há sempre, sempre, a possibilidade de cuidar mais um pouco, de não desistir do amor, e desistir da vida é um dos mais brutais sintomas de uma sociedade em declínio.
Nós, em Portugal, temos mais de 70 mil pessoas em estado crítico de saúde que não têm acesso aos cuidados paliativos… e a eutanásia ocupa muito mais espaço no debate público do que essa miserável realidade. É que a eutanásia não é apenas uma questão que diz respeito à liberdade individual. E a liberdade é um valor tão situado, tão precário e tão influenciado por miríades de contradições que nunca saberemos – muito menos no sofrimento – com que dose de liberdade se escolhe morrer. Numa crónica soberba, José Tolentino de Mendonça aborda o problema também do ponto de vista social, ao afirmar que «infelizmente o intervalo que separa o reconhecimento do direito a morrer e a imposição do dever de morrer é mínimo». (Revista E, Expresso, 26 de Maio de 2018). E é. Quase nulo. Mesmo nulo. Não existe liberdade pura. E quem escolhe morrer não foi levado a isso apenas pelo sofrimento, tal como quem se suicida. Há uma sociedade da solidão e do abandono, e é dela que devíamos discutir escrupulosamente, antes de chegarmos ao ponto de oferecer a morte a quem sofre. No fundo, como sempre, serão os mais pobres, os solitários, os mais desprotegidos e renegados da sociedade que serão convidados a ter a liberdade de escolher morrer. É sempre assim.
Nós, os católicos, somos principialistas: defendemos que há princípios intocáveis que não contradizem a misericórdia nem a liberdade individual. Um desses princípios fundamentais é a vida, não apenas consagrada na Constituição, mas no coração e na consciência de todo o ser humano. E eu espero que os nossos deputados pensem bem nisso, antes de optarem por mais uma derrota humana.
Meu pai morreu. E eu, não como cristão, mas como ser humano, só lamento não ter dado muito mais do que podia para ele sentir o quanto era amado. Mesmo cheio de todas as dores. O Amor é mais forte do que a morte.