Pelo padre José Júlio Rocha
A primeira noite trouxe uma trovoada seca, daquelas que arrepiam os pelos dos braços, o céu até parecia uma árvore de natal a piscar desesperadamente. Os outros quatro dias foram de chuvinha ou ameaça dela, num céu sempre igual, sempre cinzento, depressivamente cinzento, apesar de estarmos em agosto. Já me esquecia que a Alemanha é muitas vezes assim. Tinha aí passado um mês, nos anos noventa, lá para os lados de Dortmund, na confluência do Reno e do Ruhr, a zona das grandes indústrias pesadas, meta dos imigrantes portugueses na Alemanha. Durante esse mês, no inverno, vi o sol uma vez apenas, embora tivesse visto neve em abundância. Mas o que mais me impressionou foi essa monotonia monocromática do céu, sempre igual, sempre triste, sempre distante. Gostava de imaginar o quanto o sol ou a falta dele podem influenciar a psicologia de um povo. Os alemães são como o seu céu sem sol: sempre delicadamente frios, perseverantemente monótonos, cinzentamente empenhados.
Foi há um mês que passei cinco dias na Baviera, numa excursão de amigos que, de vez em quando, se organizam para conhecer partes da Europa. Iríamos fazer a “Rota Romântica”, um percurso de cerca de 400 quilómetros, entre Wurtzburgo e Füssen, assim chamado porque, no século dezanove, muitos escritores e artistas de estilo romântico por ali se encontravam, passeavam, distraiam, um percurso cheio de pequenas cidades que são pequenos presépios, com igrejas góticas e barrocas, os Alpes ali ao pé, a beleza das paisagens sem eucaliptos nem pinheiros, os atrativos mercadinhos de Natal que, no inverno de neve, lhe emprestam uma beleza diferente.
Latinos com alemães nem sempre combinam e nós éramos 55 no autocarro, que fez a primeira paragem a meio da autoestrada, numa estação de serviço. Nós espalhados pelas prateleiras da alimentação, a arrebanhar sandes e sumos perante o pânico dos empregados. Eles muito direitinhos, nós à balda. Estou a ver um velhote gorducho a grunhir provavelmente algumas imprecações aos portugueses, a dar cotoveladas e a resmungar sempre, porque era a sua vez. Basta um pouco de desorganização, de improviso ou de espontaneidade para atarantar os alemães.
Foi numa daquelas pequenas cidades, quando nós estávamos a tomar o nosso café de meio da manhã, uma praça linda, apadrinhada pelo cinzento do céu, que se passou uma cena estranha. Vimos um homem, idoso, cair redondo num canto da praça. Duas pessoas acorreram e, às tantas, uma delas, uma mulher, começa a fazer-lhe massagem cardíaca. Alguns dos nossos, do outro lado da praça, a uns cinquenta metros, ficaram parados, especados, com vontade de acorrer e ajudar também, mas ninguém fazia nada: duas pessoas ali, a tentar salvar um homem com um enfarte ou uma paragem cardiorrespiratória e o resto do mundo indiferente, passando, olhando, seguindo. Mais do que o acontecimento, admirou-nos o alheamento dos alemães. Nós, voyeuristas quanto possível, que paramos na estrada para ver um acidente, que acudimos a qualquer desgraça com um ímpeto latino, ali amarrados perante a tragédia alheia, e os alemães na sua vida. Em menos de dez minutos estava lá uma ambulância, dois veículos daquilo que deve ser o seu INEM e um carro de bombeiros que imediatamente vedou a cena com uns biombos. Rápido, eficaz, indiferente, sem a CMTV a furar por entre curiosos. Frio.
Acho que o ponto mais atrativo da excursão foi o castelo de Neushwanstein, de orgulhosa silhueta, inspirador dos castelos da Disney, o da Cinderella por excelência. Mandado construir no século XIX por Luís II da Baviera, o rei louco, ali se apresenta ele, imponente aos pés dos Alpes, obra megalómana e vertical, com as suas torres redondas e esguias, os seus interiores gloriosamente recamados, a sua imponência que domina o vale. De entre os 55 portugueses, uma senhora tinha dificuldades de locomoção, precisando de usar canadianas. Quando comprámos antecipadamente os bilhetes de visita, não informámos que havia uma pessoa com dificuldades de locomoção. Tínhamos de subir e descer mais de 400 degraus dentro do castelo. Impossível para a senhora. O castelo tem um elevador preparado para essas ocasiões mas nós não tínhamos marcado com antecedência, nada a fazer. E lá ficou a senhora, praticamente à entrada, ao pé do elevador parado. Nada a fazer e assim são os alemães. Claro que alguns do grupo refilaram, mas bateu e refletiu na indiferença alemã. Talvez seja isto que faz da Alemanha um país tão eficiente, faz-se o que se tem que fazer, obedece-se, cumpre-se escrupulosamente o que é para cumprir, e a grande força alemã está nisto, para o bem e para o mal. Não há sorrisos, simpatias são perda de energia.
Último dia, despedida germânica, um velho e pequeno aeroporto não longe de Munique, onde aterram algumas “low-cost”. Senti-me, quase de repente, dentro do filme de Spielberg “A Lista de Schindler”. Um homem berra ordens impavidamente, dividindo a fila de gente, uns para a esquerda, outros para a direita, conforme não sei o quê. Tudo mecânico. E vejo um idoso do nosso grupo, 93 anos, que que se esqueceu de esvaziar os bolsos, atrapalhado, quase a chorar diante de dois alemães que o olham como a um desobediente, absolutamente indiferentes à idade e ao pânico do senhor, à espera, a ditar palavras duras em alemão, língua dura já de si, só faltou ser um filme a preto e branco.
A viagem foi um paraíso à chuva. Mas fica-me sempre uma morrinha no estômago quando dizem que os alemães – e os nórdicos em geral – são mais felizes do que nós. Será só por terem mais dinheiro? Estranhos, esses índices de felicidade…
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do jornal Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio