“Estarei aqui enquanto Deus quiser. Em relação à minha morte, tenho uma atitude muito pragmática”(autobiografia)

 

O Papa Francisco, que morreu hoje aos 88 anos de idade, publicou em janeiro a sua  autobiografia, em que dizia ter uma “atitude muito pragmática” perante a morte.

“Estarei aqui enquanto Deus quiser. Em relação à minha morte, tenho uma atitude muito pragmática. E o mesmo quando alguém me fala de possíveis riscos de atentados. Quando acontecer, não serei sepultado em São Pedro, mas em Santa Maria Maior”, escreveu, dando a conhecer o seu desejo quanto ao local em que vai ser enterrado.

“O Vaticano é a casa do meu último serviço, não a da eternidade”, justificou, falando da grande devoção a Nossa Senhora, em particular o ícone da ‘Salus Populi Romani’, junto do qual rezou sempre antes e depois de cada viagem internacional do pontificado.

Em 2023, numa entrevista à vaticanista mexicana Valentina Alazraki, justificou a escolha da Basílica Papal, em Roma: “Como sempre prometi à Virgem – e o lugar está pronto -, quero ser sepultado em Santa Maria Maior”.

“É a minha grande devoção. Muito grande. Ia sempre lá, aos domingos de manhã estava lá durante algum tempo. Há uma ligação muito forte”, acrescentou.

Na sua autobiografia, Francisco referiu ainda que “o ritual das exéquias era demasiado carregado”.

“Falei com o mestre de cerimónias para o aligeirar: nada de estrado, nenhuma cerimónia para o encerramento do caixão nem a colocação da uma de cipreste dentro de uma segunda de chumbo e depois numa terceira de carvalho. Com dignidade, mas como qualquer cristão”, precisou.

Francisco lamentva a a “instrumentalização” do momento de Bento XVI, seu predecessor, a 31 de dezembro de 2022, e nos dias do funeral, no início de 2023.

“Foi uma coisa que me fez sofrer”, admitiu.

Entre as várias curiosidades que o Papa deu a conhecer na inédita autobiografia, disse que apendeu a cozinhar aos 12 anos, como irmão mais velho, quando a mãe ficou a recuperar de um parto difícil.

O primeiro emprego foi numa fábrica de meias, aos 13 anos, fazendo limpezas, e acabada a escola básica, Jorge Mario Bergoglio pensava ser médico; esteve às portas da morte, em 1957, devido a problemas respiratórios, tendo depois entrado no noviciado dos Jesuítas.

A obra tragédias que marcaram a sua adolescência e juventude na Argentina, como a de um colega que “pegou na arma do pai e matou um rapaz da sua idade, um amigo do bairro”.

Da infância, Jorge Mário Bergoglio recordou a vida numa casa simples e num bairro em que as pessoas confiavam umas nas outras.

“A dignidade era um ensinamento sempre presente nas palavras e nos gestos dos nossos pais”, escreveu.

Filho de imigrantes italianos, Francisco falou do “lado mais sombrio e cansativo da existência”, nas periferias da capital argentina, com referência a uma “Madalena contemporânea”, Porota, antiga prostituta que se dedicou depois a “cuidar dos corpos com os quais ninguém se importa”.

A obra aborda o papel da religião, rejeitando a ideia de que seja “ópio do povo”, ao realça o “compromisso pastoral e civil” de muitos católicos.

“Assim como a fé, todo o serviço é sempre um encontro, e somos nós, acima de tudo, que podemos aprender muito com os pobres”, indicou o pontífice.

O Papa não via televisão desde 1990, para respeitar um voto que fez à Virgem do Carmo na noite de 15 de julho daquele ano, e a última vez que fez férias “fora de casa” foi há 50 anos, com a comunidade jesuíta, em 1975, na Argentina.

Em “Esperança”, Francisco recordava o gosto pelo futebol, apesar dos “dois pés esquerdos” que o levaram, muitas vezes, a ser guarda-redes, e dizia sentir falta de “sair para comer pizza”.

O livro recordou a fundadora das ‘Mães da Praça de Maio’, contra os desaparecimentos durante a ditadura militar argentina (1976-1983), Esther Ballestrino de Careaga.

“Foram anos terríveis, e para mim também de enorme tensão: transportar pessoas às escondidas através dos postos de controlo na zona de Campo de Mayo, ter confiadas as suas vidas, a salvação comum. Ou, do mesmo modo, preparar a fuga de um jovem que me foi confiado por um sacerdote uruguaio, porque no seu país arriscava a vida”, pode ler-se.

Esther Ballestrino de Careaga era encarregada do laboratório onde Jorge Mario Bergoglio trabalhou na sua juventude; despareceu a 8 de dezembro de 1977 e nunca mais foi vista, mas os seus restos mortais foram encontrados em 2005.

Pontificado e atualidade

A autobiografia abordou o impacto da crise de abusos sexuais, na Igreja, sublinhando a prioridade que deve ser dada às vítimas.

“As vítimas devem saber que o Papa está do seu lado. E que nisto não se retrocede nem um passo”, indicou.

“Com vergonha e arrependimento, a Igreja deve pedir perdão pelo terrível dano que aqueles religiosos causaram com os abusos sexuais de crianças, um crime que gera profundas feridas de sofrimento e de impotência, sobretudo nas vítimas, mas também nos seus familiares e em toda a comunidade”, acrescentava.

Francisco pediu que os responsáveis católicos levem os casos “a sério, sem qualquer hesitação ou subestimação”.

“O sofrimento das vítimas é um lamento que sobe ao céu, que toca a alma e que durante muito tempo foi ignorado, escondido ou mesmo obrigado a calar. Na raiva, justificada, das pessoas, a Igreja vê o reflexo da ira de Deus, traído e esbofeteado por esses desonestos consagrados”, observou.

Olhando para o passado, nunca será suficiente aquilo que se fizer para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será pouco o que se fizer para dar vida a uma cultura capaz de evitar que não só tais situações se repitam, mas que encontrem um espaço para serem encobertas”.

O livro recordava um encontro entre o Papa Francisco e Bento XVI, no início do pontificado, em 2013.

“O meu predecessor entregou-me uma grande caixa branca: «Está tudo aqui dentro», disse-me ele, as atas com as situações mais difíceis e dolorosas, os abusos, os casos de corrupção, os episódios obscuros, os erros. «Eu cheguei até aqui, tomei estas providências, afastei estas pessoas, agora cabe a ti.» Eu prossegui o seu caminho”, relatou Francisco.

A obra evoca as quatro Jornadas Mundiais da Juventude do pontificado, que decorreram no Brasil, na Polónia, no Panamá e em Portugal, as quais deixaram no Papa “um sentimento reconhecedor de esperança”, que se uniu ao “sentido de mistério”.

As guerras na Ucrânia e no Médio Oriente também foram abordadas, pedindo a intervenção da comunidade internacional para “identificar caminhos para o diálogo, as negociações, a mediação”.

O Papa aludiu ainda à “barbárie” começada com o atentado de 7 de outubro de 2013, quando as milícias do Hamas atravessaram as barreiras que dividem a Faixa de Gaza de Israel e mataram militares e civis israelitas, “da maneira mais diabólica e brutal”, fazendo ainda vários reféns.

“Perdi também amigos argentinos naquela carnificina, uma dupla dor, pessoas que conhecia há anos e que viviam num kibutz na fronteira com Gaza”, revelou.

Francisco considerava que a resposta israelita representou “outra, enorme” barbárie: “Dezenas de milhares de mortos inocentes, em grande parte, mulheres e crianças, centenas de milhares de deslocados, de casas destruídas, de pessoas a um passo da penúria”.

O Papa alertou para o aumento dos populismos, considerando que “as promessas que se baseiam no medo, acima de tudo, o medo do outro são a censura habitual dos populismos e o início das ditaduras e das guerras”.

“Emigração e guerra são duas faces da mesma moeda. Tal como foi bem escrito, a maior fábrica de migrantes é a guerra. De uma maneira ou de outra, porque também as mudanças climáticas e a pobreza são em grande parte o fruto doente de uma guerra surda que o homem declarou: a uma mais igualitária distribuição dos recursos, à natureza, ao seu próprio planeta”, sustentou.

Recordando o início do pontificado, em 2013, Francisco admitiu que, na altura, “não acreditava que escreveria quatro encíclicas, e todas as cartas, os documentos, as exortações apostólicas, nem que faria todas estas viagens, a mais de 60 países”.

“A Igreja que caminha será cada vez mais universal, e o seu futuro e a sua força virão também da América Latina, da Ásia, da Índia, de África, já se vê pela riqueza das vocações. Mesmo na Indonésia, em Singapura, na Nova Guiné ou em Timor-Leste, em setembro de 2024 — uma experiência maravilhosa, que muito desejava, uma infinidade de crianças, de pessoas que lançavam as suas capas, enquanto o carro papal passava, ao longo dos dezasseis quilómetros do caminho para a Nunciatura —, encontrei uma Igreja em crescimento e com uma identidade própria”, indicou.

Francisco refletia sobre os seus problemas de saúde e disse nunca ter ainda colocado a possibilidade de renunciar ao pontificado.

“Cada vez que um Papa está doente sente-se soprar um pouco de vento de Conclave, mas a realidade é que nem nos dias das operações cirúrgicas, nunca pensei em renunciar, a não ser para dizer que, para todos, é sempre uma possibilidade, que desde o momento da eleição tinha entregue ao cardeal camerlengo uma carta de renúncia em caso de impedimento por motivos médicos”, explicou.

A obra assumiu resistências ao pontificado, dentro da Igreja, defendendo as posições sobre divorciados e homossexuais

“Na Igreja, são todos convidados, mesmo as pessoas divorciadas, mesmo as pessoas homossexuais, mesmo as pessoas transexuais”, realçou.

O Papa recordava a primeira vez que um grupo de transexuais foi ao Vaticano e “saíram a chorar, comovidas”.

“São filhas de Deus! Podem receber o batismo nas mesmas condições dos outros fiéis e nas mesmas condições dos outros, podem ser aceites na função de padrinho ou madrinha, bem como ser testemunhas de um casamento. Nenhuma lei do direito canónico o proíbe”, defendeu.

Num capítulo intitulado ‘Todos fora e todos dentro’, o Papa reconheceu que “existem sempre resistências, na maioria das vezes ligadas a um escasso conhecimento ou a alguma forma de hipocrisia”.

A obra abordou a polémica com a declaração ‘Fiducia supplicans’, do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre as bênçãos aos irregulares, que assinou em dezembro de 2023.

“Abençoam-se as pessoas, não as relações”, precisou o Papa.

Olhando para os 12 anos de pontificado, Francisco disse que “as decisões mais difíceis, mais dolorosas, foram tomadas após consultas e reflexões, procurando unanimidade e numa via sinodal”.

“A reforma da Cúria Romana foi a mais difícil e a que registou durante mais tempo as maiores resistências à mudança, por exemplo, na gestão económica”, revelou.

Tenho uma certeza dogmática: Deus está na vida de todas as pessoas, Deus está na vida de cada um. Mesmo que a vida de uma pessoa tenha sido um desastre, tenha sido destruída pelos vícios, pela droga ou por qualquer outra coisa, Deus está naquela vida”. Referiu.

Conclave

O Papa apresenta memórias inéditas do conclave em que foi eleito, em março de 2013, recordando a curiosidade dos cardeais e a surpresa perante a sua decisão.

“Dizer que não esperava nada do género, nunca na vida e muito menos no início daquele conclave, é certamente dizer pouco”, relatou.

O cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, então com 76 anos, entrou para o conclave de 2013, a 12 de março, e foi eleito no dia seguinte como sucessor de Bento XVI, assumindo o inédito nome de Francisco.

O Papa assinalou que, como dizem os vaticanistas, poderia ser um “kingmaker”, entre os eleitores do sucessor de Bento XVI, na sua condição de cardeal latino-americano, capaz de “endereçar um número de votos sobre este ou aquele candidato”.

“Eu não contava, os candidatos fortes que os jornalistas indicavam e procuravam naqueles dias de março de 2013, eram outros: o arcebispo de Milão, Angelo Scola; o cardeal de Boston, Sean O’Malley; o arcebispo de São Paulo, Odilo Scherer; e Marc Ouellet, o cardeal canadiano que é hoje presidente emérito da Comissão Pontifícia para a América Latina”, recordava.

Nas congregações gerais, as reuniões preparatórias do Colégio dos Cardeais, Jorge Mario Bergoglio apresentou um discurso que tinha “despertado interesse, atenção”.

“Um cardeal aproximou-se de mim e disse-me: «Pois, gostaríamos mesmo de uma pessoa que fizesse essas coisas…». «Sim, mas onde a encontras?», respondi-lhe. E ele: «Tu.» Comecei a rir: «Ah, ah, ah, sim, está bem, cumprimentos lá em casa»”, escreveu.

A 12 de março, início do conclave, o futuro Papa apresentou-se na Casa de Santa Marta com a mala em que carregava “poucas coisas”.

“Tinha deixado tudo em Buenos Aires, os livros que começara a ler, as homilias que tinha preparado para o Domingo de Ramos e para a Quinta-feira Santa, e também um pouco de desordem. E já comprara o bilhete de regresso para o sábado, 23”, referia.

Francisco recordou ter dito, dias antes, a outro arcebispo, que “neste momento da Igreja, nenhum cardeal pode dizer que não”.

A primeira votação encontrou o arcebispo de Buenos Aires “absolutamente tranquilo”, embora os votos se fossem repetindo no segundo e terceiro escrutínios.

O último Papa diz que foi sendo questionado por vários cardeais e que apenas quando lhe perguntaram sobre a suposta falta de um pulmão – foi operado em 1957 para a retirada de um lobo superior, onde estavam três quistos – percebeu a possibilidade de ser eleito.

“Compreendi pelo menos que havia o risco”, assinalou.

Francisco disse que nunca preencheu o boletim que é oferecido para contar os votos em cada cardeal, afirmando que “o escrutínio é uma coisa mesmo aborrecida de seguir, parece um canto gregoriano, mas com muito menos harmonia”.

A maioria de dois terços dos votantes chegaria no quinto escrutínio, em que se repetiu a votação devido a um cartão em branco a mais.

“Enquanto os cardeais ainda aplaudiam e o escrutínio continuava, o cardeal Hummes, que tinha estudado no seminário franciscano de Taquari, no Rio Grande do Sul, levantou-se e veio abraçar-me: ‘Não te esqueças dos pobres’, disse-me ele. A sua frase marcou-me, senti-a na carne. Foi então que surgiu o nome Francisco”, lembrou.

O Papa explicou que, na sacristia, colocou o anel da ordenação episcopal e rejeitou a cruz em ouro e os sapatos vermelhos: “Não foi nada de preparado. Era simplesmente o que sentia, com espontaneidade. Tal como não quis a capa de veludo nem o carretel de linho”.

Saí e fui de imediato ter com o cardeal Ivan Dias, que estava numa cadeira de rodas e, talvez por ainda não ter confiança com as novas vestes, tropecei num degrau. O meu primeiro ato de Papa… foi um tropeção. Mas não caí”.

Francisco admitia que encontrou paz, após a eleição, e que gostava de estar com as pessoas, recordando a opção por residir em Santa Marta, resposta à necessidade de viver “junto dos outros”, numa opção que provocou surpresa e algum desconforto, junto de responsáveis do Vaticano.

O livro ‘Spera’ (‘Esperança’), editado pela Mondadori, foi publicado em mais de cem países, incluindo Portugal (Nascente), tendo escrito com Carlo Musso, ex-diretor editorial de não-ficção da Piemme e da Sperling & Kupfer.

Ao longo de mais de 25 capítulos e 300 páginas, Francisco refletiu sobre temas como as migrações, a crise ambiental, a política social, a condição da mulher, a sexualidade, o desenvolvimento tecnológico, o futuro da Igreja e o diálogo entre religiões.

(Com Ecclesia)

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