Pelo padre José Júlio Rocha
Cheguei a conhecer a tia Rosa Aguiar, minha bisavó, ou melhor, a avó velhinha, que morreu em 1973, tinha eu quatro anos. Foi a primeira morte na minha vida. Ela vivia em casa dos avós paternos e, quando nós lá ficávamos, era no seu quarto que dormíamos: ela ao fundo, numa pequena cama de ferro forjado branco, nós do lado de cá, numa cama de madeira. Nessa noite, eu e o Hernâni brincávamos a acender e apagar a luz do quarto. Ouvimos a voz dela, fraca, da cama, a pedir para estarmos quietos. No dia seguinte acordámos com meu avô e minha avó num desassossego. A avó velhinha morrera no mesmo quarto em que tínhamos dormido.
No início dos anos sessenta chegou a casa dos avós o primeiro aparelho de rádio. Um monstro. Meu pai e meus tios ainda eram solteiros e viviam lá em casa. Contam eles que, quando acenderam o aparelho, a bisavó Rosa entrou em curto-circuito. Levantou-se e, devagarinho, como um gato a aproximar-se de uma coisa estranha, avançou até ao rádio e pôs-se a olhar para as traseiras do aparelho, a ver se encontrava o homem cuja voz se ouvia dentro da caixa. Não lhe passava pela cabeça uma máquina a falar sozinha.
Mais tarde chegaram os televisores. A avó velhinha já não os viu. Mas há histórias interessantes de pessoas que tinham vergonha de se despirem diante da televisão, não fosse o senhor do ecrã ver a cena.
Agora é a minha mãe. Maria da Conceição. Tem um “tablet” que a conecta com os filhos, as amigas, o mundo. Não sei se ela já mandou alguma mensagem ao Papa Francisco, mas acho que se acha capaz de falar com todo o mundo. Às vezes irrita-se com o aparelho, fala com ele, briga com ele. “Eles estão a ver!”, diz-me. “Eu escrevo uma coisa e eles mudam tudo! Eles corrigem o que eu escrevo!” Maria da Conceição acha que o Facebook é uma espécie de “big brother” que vê tudo, sabe tudo. Como explicar a Maria da Conceição que “eles” não existem, são apenas algoritmos? Não vale a pena…
E agora também sou eu a fazer o papel de minha bisavó, da velhinha que não tirava a roupa, de minha mãe que fala com o “tablet”. E já nem me refiro à “Alexa”, a tal menina artificial de voz maviosa que, enquanto a mandamos acender a lareira e apagar as luzes da garagem, nos vai contando as peripécias de Vasco da Gama no caminho para a Índia. Ontem mesmo escarafunchei na Internet e encontrei uma coisa chamada ChatGPT, um site a quem pedimos para escrever um texto sobre um tema qualquer e ele desenvolve a questão como um professor universitário. Pedi um “poema curto sobre a Batalha da Salga”. Numa tirada, em três segundos, do meio do nada, apareceu isto:
Na batalha da Salga,
o campo era de guerra,
os bravos Açorianos
lutaram com fúria em terra.
A luta foi sangrenta,
mas a coragem prevaleceu,
a vitória foi conquistada,
e a liberdade floresceu.
A isto chamamos inteligência artificial e ainda estamos no início da procissão. Geoffrey Hinton, de 75 anos, um dos pais da IA (inteligência artificial) anunciou sua saída do Google em entrevista ao jornal americano “The New York Times”, dizendo que agora se arrepende do seu trabalho. Isto quer dizer, muito simplesmente, que estamos a entrar por territórios desconhecidos e perigosos. Já sentimos a influência da IA no meio das nossas vidas, nem que seja pelo simples facto de as redes sociais, que funcionam à base de algoritmos, estarem a afetar de modo drástico a nossa forma de pensar, de fazer, de ser.
Michael Schumacher teve, há dez anos, um acidente de esqui. Muitos anos numa cama. Mas há algumas semanas, a revista alemã “Die Aktuelle” fez uma entrevista ao ex-piloto de fórmula 1. Schumacher falou de várias coisas, inclusivamente dos progressos da sua saúde e dos seus projetos. As suas palavras, as fotos que acompanhavam a entrevista, espantaram o mundo. Só que Michael Schumacher está de cama e a entrevista nunca aconteceu. Tudo foi gerado por inteligência artificial. A revista foi processada pela família.
O caminho está aberto e é muito largo. Qualquer pessoa pode, por exemplo, fazer um vídeo com o Papa Francisco a dizer disparates com um tal hiper-realismo que é quase impossível desmentir: não é muito difícil imaginar o alcance medonho a que tudo isto pode chegar.
As máquinas sofisticadíssimas que fizemos já aprenderam a aprender, já sabem o que fazer com o que aprenderam. E a questão não se prende apenas com um aluno ser capaz de apresentar uma tese de doutoramento sem ter escrito uma linha. Trata-se, no extremo, do futuro da humanidade.
Há que haver um debate ético sério sobre as consequências do desmesurado progresso humano a respeito da IA. Urgente. Sobre os limites que nos devemos impor. A IA será útil enquanto instrumento de progresso e enquanto servir o bem da humanidade. Não enquanto nos influenciar social e humanamente, a ponto de sermos guiados por máquinas. Lembram-se do 6 de Janeiro de 2021, com a invasão ao Capitólio? Do 8 de Janeiro de 2023 no Brasil? Tudo isso foi resultado do desabamento das relações sociais e políticas, das “bolhas cognitivas”, de ódios em tsunami que foram alimentados pelos algoritmos das redes sociais. É já a inteligência artificial a dominar as pessoas. Que será do futuro da democracia e das próprias relações humanas? Onde andaremos quando forem as máquinas a decidir quem somos e o que fazemos?
Estamos a um passo da inteligência artificial. E a um passo do homem das cavernas.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.