Pelo padre José Júlio Rocha
Não é fácil nem talvez honesto fazer o retrato interior de uma pessoa a partir de uma fotografia. Mas há fotografias que revelam mais do que confissões inteiras. É o caso daquela que tenho diante de mim. Apresenta um “teenager”, talvez entre os quinze e os dezassete anos. O cabelo penteado ao lado, a cair sobre a testa, bem alisado, nariz e faces corretas. A boca nem ri nem se entristece, a lembrar a Gioconda, lábios finos e fechados, numa espécie de desprezo pelo mundo inteiro. Os olhos dizem tudo: semicerrados e serenos, as sobrancelhas ligeiramente arqueadas, não emitem, nem olhos nem sobrancelhas, nenhum sentimento, nenhuma empatia, nenhuma interrogação, dúvida ou tragédia pessoal. Nada. Há qualquer coisa nesse olhar que me fala de frieza gélida, de arrogância e desprezo frios a tal ponto de me fazer pensar que estou diante de alguém que vive para lá do bem e do mal: um ser maquiavélico. Trata-se de Vladimir Putin, o homem, neste momento, mais odiado do mundo, mas que não se importa nada com isso, ou talvez assim se sinta mais confortável.
Putin é um psicopata de uma inteligência arguta e uma visão das coisas muito fina, que só me faz lembrar Hanibal Hecter de “O Silêncio dos Inocentes”. Durante muitas semanas, jornalistas, comentadores, políticos e outros seres humanos de todo o mundo desabalaram-se a tentar perceber e analisar as motivações do presidente russo quando cercou a Ucrânia, a invadiu e continua bombardeando cidades e matando inocentes. Já há centenas de teorias, mas a única que acho razoável é a de que Putin quer ficar na história da Rússia como mais um dos grandes líderes que fizeram florescer a grande Mãe Rússia, sonho de alguns czares mas, sobretudo, e mais recentemente, do inenarrável Estaline, que espalhou a vaga soviética pela Europa e Ásia a toque de fome, guerra e morte. Putin não tem sentimentos, não distingue o bem do mal, não olha a meios. Gasta milhares de milhões num intrincado “ministério” que se dedica a fabricar e divulgar mentiras e “fake news” que vão ludibriando o pobre povo russo que ainda não sabe bem o que é uma democracia de direito, pois a experiência da “Perestroika” foi devastadora para muitos russos. Putin é um psicopata perigoso, até porque tem o maior arsenal nuclear do planeta e já quebrou o tabu, pondo em alerta máximo os serviços de segurança nuclear.
Em contraste com a figura poderosa do Golias Putin, surge na cena um herói, que de heróis o mundo bem precisa, um David, que já se mostrou pronto a largar a pedra da funda no centro da testa do inimigo. É Volodymyr Zelensky, comediante de profissão e que, há três anos, se tornou presidente da Ucrânia, abrindo-a ao Ocidente, o que, por aquelas bandas, costuma incomodar sobremaneira Moscovo. Zelensky mostrou uma coragem a toda a prova, ao declinar a proposta dos EUA de o irem buscar à Ucrânia e dar-lhe asilo, dizendo não precisar de boleia mas de munições. A figura de Zelensky aparece como aquela do herói – a fazer lembrar William Wallace da Escócia – que unifica a vontade de um povo de defender a sua independência, a sua democracia, a sua vida e dignidade. É a esperança da Ucrânia.
O que está a acontecer ao mundo ocidental, que não é mais o mesmo depois desta guerra? Os Estados Unidos continuam a dilacerar-se naquela divisão que o inominável presidente anterior veio semear. Os republicanos apontam o dedo a Biden, o “sleepy Joe”, como o apelidam: a retirada desastrosa do Afeganistão é o mote, segundo os republicanos, para essa fraqueza, incapacidade e quase apagamento dos americanos nesse conflito em que não se pode pôr um pé em falso ou a ameaça nuclear dá mais um passo em frente. Os democratas acusam a administração Trump de anos de subserviência ao czar de Moscovo, que controlou, ao milímetro, o silêncio do ex-presidente americano, que nunca soube lidar com Putin, enquanto este projetava o futuro que é hoje.
Na Europa aconteceu exatamente o contrário: agora somos, mais do que nunca, a União Europeia, dando sentido ao provérbio que diz que todos nos unimos em torno de um inimigo comum. É exatamente disso que a Ucrânia precisa: uma Europa unida em uníssono com a defesa da integridade territorial do país amigo, disposta a ajudá-lo humanitária e militarmente, mesmo sabendo que, diante daquela Rússia de Putin, qualquer coisa pode acontecer, mesmo que seja muito má.
E o amanhã? Prevejo três cenários. O mais terrível é a possibilidade de avanços na pressão do nuclear. Putin está cada vez mais só e nem a China quer esta guerra. Um pitbull isolado e cercado ataca sempre. Já vimos do que ele é capaz e esse cenário não é impossível. O presidente russo pode bem ser capaz de acenar com a ameaça atómica a tal ponto de paralisar o mundo, porque o que Putin não quer perder é a face. E qualquer sinal de fraqueza é equivalente a perder a face.
Um segundo cenário seria a possibilidade – por enquanto, remota – de um acordo de paz. O que custaria isso à Ucrânia? Quais seriam as exigências da Rússia? Presumo, no entanto, que Putin pensará na paz só depois de colocar na cadeira de Kiev um governo fantoche, o que poderia indiciar uma guerra civil na Ucrânia. Há, no entanto, um pormenor não despiciendo: cada vez mais os russos estão contra esta guerra insana. A oposição interna, por enquanto, tem rendido apenas uns milhares de manifestantes, entre os quais, uma nonagenária que sobreviveu à batalha de Estalinegrado. Mas, com o andar da carruagem e com a mossa gigante que as sanções estão a gerar, todos os cenários estão em cima da mesa.
A terceira possibilidade é, para mim, a mais plausível. Putin cometeu um erro estratégico: as guerras-relâmpago já não se ganham. Com a resistência dos ucranianos, prontos a dar a vida pela pátria, com o apoio logístico e militar de todo o mundo, os russos vão atolar-se na Ucrânia, numa guerra de guerrilha sem quartel, como no Afeganistão, como no Vietname. E vão sair de cabeça baixa, depois, eventualmente, de anos de destruição e devastação da mártir Ucrânia.
E, agora, o melhor que já ouvi sobre Putin. Veio de minha mãe que, na sua simplicidade, vê, angustiada, o avançar do monstro da guerra: “era cortar a cabeça daquela madraço e jogar à bola com ela.” Não é lá muito cristão, mas apetece.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio