Pelo padre José Júlio Rocha
O primeiro de janeiro de 1980 é um daqueles dias que marcam uma vida para sempre. É de tal maneira significativo que podemos dizer, os que passamos por aquela experiência, que há um antes e um depois desse dia. O terramoto, grau 7.1 na escala de Richter, atingiu a Terceira, a Graciosa e São Jorge, com inusitada violência; o mundo, à nossa volta, dançava uma dança macabra e destrutiva, julgávamo-nos num barquinho em mar bravo.
Nesse dia fomos à missa das nove, que era a Mãe de Deus. Meu irmão João Paulo, então com oito anos, leu uma das leituras. Tinha sido apertado em casa para ler bem alto, porque a igreja era grande e o som decrépito. Pois o João não leu: gritou. Acho que, do lado de fora da igreja, se poderiam ouvir bem as palavras da leitura que leu. A brincar, dizíamos que quase partia os vidros da igreja, que quase lhe caía o teto. Leu bem, o miúdo.
Da parte da tarde, fomos almoçar a casa de um casal amigo, já com uma certa idade e os filhos emigrados. Era o senhor Francisco Silva, o tio Chico Caneco, tão amigo de meu pai quanto portista como ele, e a senhora sua esposa, um amor de senhora, de uma delicadeza e simpatia raras, com um nome que se coadunava bem com a pessoa: Maternidade.
O dia estava estranhamente quente e abafado. Almoçámos galinha, que bem me lembro. Na mesa, estava sentado mesmo em frente ao tio Chico, alto, magro, cabelos brancos de neve, tão brincalhão como todos os Canecos da Fonte do Bastardo e arredores, um clã de gente boa e de quem prezo a amizade, até porque, lá atrás, as nossas famílias entroncam-se.
Quatro menos vinte da tarde, pratos com restos, uma garrafa de vinho vazia, sumo de laranja no meu copo, tio Chico caneco, no seu modo barítono de falar, está a rir e o riso, num ápice, desaparece-lhe da boca e ele começa a ficar assustado, branco, olhos muito abertos. Um som cavo, não muito percetível, medonho, começa a sair das entranhas da terra. Somos sacudidos por um abanão, tudo pára por uns segundos e ninguém fala, ninguém se mexe, eu não percebo nada do que se está passando mas vejo medo nos olhos dos mais velhos. O silêncio dura dois ou três segundos, depois tudo começa.
Sou atirado para fora da cadeira mas mantenho-me de pé. Os pratos dançam em cima da mesa, que dança sobre o chão, que dança sobre a terra. Vejo o tio Chico, mãos na cabeça, clamando “Nossa Senhora nos acuda!”, a tia Maternidade tentando empurrar meu irmão para debaixo da mesa. Meus pais também clamam. Coisas a tilintar e a partir. A sensação é a de estarmos em pé, num avião, sob grande turbulência. Tenho um medo absurdo e avassalador, mais pelo pânico dos mais velhos do que por aquilo que está acontecendo e não percebo. Aos onze anos, sentia o medo de morrer num instante, sem saber como, sem saber nada.
O resto, toda a gente sabe. Mas nesse primeiro dia do ano oitenta, fiquei a saber, de saber de experiência feito, o que é viver nos Açores, em cima de vulcões dormentes ou acordados, sobre uma crosta terrestre fina e crivada de falhas tectónicas, rodeado por um mar atlântico imenso, que se move até de noite, num rugido, por vezes, cavernoso, neste tempo teimoso de ventos e tempestades, neste clima inconstante de que dificilmente adivinhamos o amanhã.
A qualquer momento, um terremoto pode fazer a sua visita inesperada. Já senti mais de dez, nada que se comparasse a 1980, mas, mesmo assim, em número suficiente para temer algo semelhante, mais cedo ou mais tarde. Mais raras são as crises vulcânicas, que se fazem anunciar em imensos sismos, numa atividade febril que traz as populações com o coração nas mãos.
Estranhamente, São Jorge é a ilha que menos conheço dos Açores, apesar de ser a mais vizinha. Talvez por ser a mais próxima, vou deixando para a próxima vez uma visita profunda a um dos paraísos indescritíveis dos nossos Açores. São Jorge é solene, com aquele espinhaço de serra a cortar o mar, qual serpente gigantesca, com as suas fajãs cá em baixo, em lugares impossíveis, a nobreza daquelas vertentes surreais, o verde, esse verde único e irrepetível a espalhar-se, em tonalidades claras na serra, mais escuras nas escarpas, aquele nevoeiro persistente nos planaltos, aquele norte assustador, aquele sul solarengo. São Jorge é um mundo por descobrir.
Dos açorianos diz-se que são como o seu clima: fazem as quatro estações num dia (ainda há pouco estava sol, agora chove). Tenho a tendência a concordar, até porque é provado que existe uma certa relação entre a pessoa, a comunidade e o ambiente em que vive. Não penso assim do Jorgense. De todos os que conheci e conheço (e tenho muitos amigos de São Jorge), a ideia que me dá é que eles são gente de um só sentir, duros como a ilha, silenciosos, trabalhadores, pragmáticos e senhores de uma honestidade rara, em total contradição com a sua alcunha de “patacos falsos”. O jorgense sabe receber e, durante todos estes anos de padre que tenho, sempre ouvi dizer que era São Jorge a ilha que recebia e tratava melhor os seus sacerdotes.
Neste momento dormem, literalmente, em cima de um vulcão com grandes hipóteses de entrar em atividade: a coisa mais incerta, neste momento, é o dia de amanhã. A qualquer altura, a qualquer momento. Vivem-se dias de angústia, as ruas desertas, não se dorme nas Velas, não se sabe como, onde, quando ou porquê. O medo habita em todas as casas.
Alguma novidade na nossa história conturbada? Nem por isso. Nem no que diz respeito à nossa coragem. Somos todos jorgenses.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.