“Escuta de todos” contraria modelos de concentração de poder e dinheiro, diz novo Instumentum Laboris do Sínodo

O documento do trabalho para a próxima Assembleia Sinodal, que vai decorrer em outubro, no Vaticano, aponta o processo de “escuta de todos”, promovido pela Igreja Católica, como exemplo para contrariar modelos de “concentração” de poder e dinheiro.

“A disponibilidade para a escuta de todos, especialmente dos pobres, promovida pelo estilo de vida sinodal está em nítido contraste com um mundo em que a concentração do poder exclui os pobres, os marginalizados e as minorias”, indica o texto, divulgado hoje em conferência de imprensa, pela Santa Sé.

O documento fala numa “época marcada por desigualdades cada vez mais acentuadas”, alertando para “uma crescente desilusão face aos modelos tradicionais de governo, pelo desencanto em relação ao funcionamento da democracia”.

As preocupações estendem-se ao “predomínio do modelo de mercado nas relações interpessoais e pela tentação de resolver os conflitos pela força e não pelo diálogo”.

“A sinodalidade poderá oferecer uma inspiração para o futuro da nossa sociedade”, indica o texto.

O ‘Instrumentum Laboris’ (IL), documento de trabalho para a segunda sessão da XVI assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos, nasceu de uma consulta a dioceses e organismos episcopais de todo o mundo.

A reflexão apela a testemunho partilhado sobre “questões sociais de relevância global, como o cuidado da casa comum e os movimentos migratórios”, apontando, em particular, a “grandes áreas geográficas supranacionais”, como a Amazónia, a bacia do Congo ou o Mediterrâneo.

“Uma Igreja sinodal poderá testemunhar a importância de que as soluções dos problemas comuns sejam elaboradas com base na escuta das vozes de todos, principalmente dos grupos, comunidades e países que habitualmente ficam à margem dos grandes processos globais”, lê-se.

O IL convida à “escuta das pessoas que vivenciam vários tipos de pobreza e marginalidade” e questiona a “cultura mercantil que marginaliza a gratuidade”.

O texto, intitulado ‘Como ser Igreja sinodal missionária’, apresenta 112 pontos, divididos em três partes, com uma introdução e uma secção de “fundamentos”.

“Um mundo em crise, cujas feridas e desigualdades escandalosas ressoam dolorosamente no coração de todos os discípulos de Cristo, leva-nos a rezar por todas as vítimas da violência e da injustiça e a renovar o nosso compromisso ao lado das mulheres e dos homens que em toda as partes do mundo se empenham como obreiros de justiça e de paz”, pode ler-se.

Os contributos recolhidos destacaram a “variedade das tradições litúrgicas, teológicas, espirituais e disciplinares”, assinalando que “a valorização dos contextos, das culturas e da diversidade é um ponto chave para crescer como Igreja sinodal missionária”.

“Tomar a sério esta pluralidade de formas afasta pretensões hegemónicas e o risco de reduzir a mensagem salvífica a uma única compreensão da vida eclesial e das expressões litúrgicas, pastorais ou morais”, indica o IL.

O documento considera um “escândalo” a existência de “Igrejas ricas e de Igrejas que vivem em condições de grande privação”, recordando os cristãos que vivem em “contextos marcados pela violência, a perseguição e a ausência de liberdade religiosa”.

As questões do “colonialismo e do neocolonialismo” são também abordadas, indicando que “muitas Igrejas são portadoras de uma memória ferida, sendo necessário promover caminhos concretos de reconciliação”.

O IL refere o impacto ecuménico do processo sinodal, apontando à “questão do exercício do ministério petrino”, o papel do Papa, abordado num recente documento do Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos.

Documento coloca em causa “estrutura piramidal” da Igreja

O documento apela a uma transformação de “estruturas e processos” nas comunidades católicas, superando o “modelo piramidal” no exercício do poder.

O texto, defende uma visão renovada do ministério ordenado, “passando de um modo piramidal de exercitar a autoridade para um modo sinodal”.

A reflexão questiona ainda um exercício do ministério episcopal tendencialmente “monárquico”, concebido como “cúmulo de prerrogativas de que derivam todos os outros carismas e ministérios”.

“Na Igreja o exercício da autoridade não consiste na imposição de uma vontade arbitrária, mas, enquanto ministério ao serviço da unidade do Povo de Deus, constitui uma força moderadora da busca comum das exigências do Espírito”, pode ler-se.

O novo IL rejeita a oposição entre “consulta e deliberação”, destacando que a tomada de decisão, na Igreja, se realiza “com a ajuda de todos, nunca sem a autoridade pastoral que decide por inerência de cargo”.

O texto, intitulado ‘Como ser Igreja sinodal missionária’, apresenta 112 pontos, divididos em três partes, com uma introdução e uma secção de “fundamentos”.

O Vaticano recebeu 108 relatórios de Conferências Episcopais (de um total de 114), nove das Igrejas Católicas Orientais, o contributo da USG-UISG (União Internacional dos Superiores Maiores e a União Internacional das Superioras Gerais), organismos da Cúria Romana e mais de 200 comentários, provenientes de realidades internacionais, faculdades, associações de fiéis, comunidades e pessoas individuais.

A estes contributos somaram-se as conclusões do encontro internacional “Os Párocos pelo Sínodo”, que decorreu em Roma, de 28 de abril a 2 de maio.

“A sinodalidade não implica, de modo algum, a desvalorização da autoridade e da missão específica que o próprio Cristo confiou aos pastores, os bispos com os presbíteros”, observa o novo documento de trabalho.

A reflexão aborda a necessidade de um “descentramento do governo e da planificação pastoral”, com maior autonomia das Conferências Episcopais, favorecendo “a valorização das expressões litúrgicas, disciplinares, teológicas e espirituais apropriadas aos diferentes contextos socioculturais”.

“A adoção de um estilo sinodal permite deixar de pensar que todas as Igrejas devam forçosamente mover-se ao mesmo ritmo relativamente a cada questão”, indica o IL.

O documento convida a promover “um conhecimento das culturas em que as Igrejas vivem e atuam, incluindo a cultura digital, hoje tão difundida, sobretudo no âmbito dos jovens”.

Foto: Secretaria Geral do Sínodo/Agência Ecclesia

Um novo ministério da escuta

O documento do trabalho propõe, ainda, a criação de um “ministério de escuta e acompanhamento” nas comunidades católicas.

“Representa uma ‘porta aberta’ da comunidade, através da qual as pessoas podem entrar sem se sentirem ameaçadas ou julgadas”, indica o texto, divulgado hoje em conferência de imprensa, pela Santa Sé.

A Secretaria-Geral do Sínodo sublinha que “uma Igreja sinodal é uma Igreja que escuta, capaz de acolher e de acompanhar, de ser considerada casa e família”.

O texto sustenta que “escuta e acompanhamento constituem uma dimensão normal da vida de uma Igreja sinodal”.

Cada comunidade é convidada a “promover uma ampla participação nos processos de discernimento, prestando especial atenção ao envolvimento dos que se encontram nas margens da comunidade cristã e da sociedade”.

“Como modelo de consulta e escuta, propõe-se a criação de assembleias eclesiais a todos os níveis, procurando não limitar a consulta ao interior da Igreja Católica, mas beneficiando do contributo de outras Igrejas e Comunidades Eclesiais, de outras religiões presentes no território e da sociedade, no ‘caminhar juntos’ da comunidade cristã”.

A proposta de “cultura do discernimento” é acompanhada por uma reflexão sobre “a articulação dos processos decisórios”.

“Uma orientação que se manifeste no processo consultivo como resultado de um correto discernimento, sobretudo quando realizado por organismos de participação da Igreja local, não pode ser ignorada”, pode ler-se.

A reflexão coloca em debate a tradicional “ancoragem territorial” das paróquias católicas, num mundo mais urbano e com maior facilidade de deslocação.

“Tal facto não pode deixar de interrogar as formas organizativas da Igreja, que se estruturaram com base numa outra conceção de lugar e exige também a assunção de critérios diferenciados, obviamente não contraditórios, para encarnar a única verdade na vida das pessoas”, indica o documento de trabalho.

O texto indica que “a conversão sinodal das mentalidades e dos corações deve ser acompanhada de uma reforma sinodal dos lugares eclesiais, chamada a ser estrada para caminhar juntos”.

O novo IL sustenta que uma Igreja sinodal” necessita da cultura e prática da transparência e prestação de contas”, recordando a “perda de credibilidade resultante dos escândalos financeiros e principalmente dos abusos sexuais”. 

“A falta de transparência e de formas de prestação de contas alimenta o clericalismo, que assenta no pressuposto implícito de que os ministros ordenados não devem prestar contas a ninguém no exercício da autoridade que lhes foi conferida”, adverte o documento.

Nesse contexto, o instrumento de trabalho apresenta um conjunto de pontos que podem ajudar a promover uma cultura de transparência:

– Funcionamento eficaz dos Conselhos dos assuntos económicos;

– Envolvimento efetivo do Povo de Deus, nomeadamente dos membros mais competentes, no planeamento pastoral e económico;

– Elaboração e publicação (acessibilidade efetiva) de um relatório de contas anual, se possível certificado por revisores externos, que torne transparente a gestão dos bens e dos recursos financeiros da Igreja e das suas instituições;

– Prestação de contas anual sobre a evolução da missão, que compreenda uma ilustração das iniciativas empreendidas em matéria de tutela de menores e pessoas vulneráveis e de promoção do acesso das mulheres a posições de autoridade, bem como da sua participação nos processos decisórios;

– Procedimentos de avaliação periódica do desempenho de todos os ministérios e atribuições no seio da Igreja.

A segunda sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos vai decorrer de 2 a 27 de outubro, com o tema ‘Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão’; a primeira sessão decorreu em outubro de 2023.

A Conferência Episcopal Portuguesa está representada pelo seu presidente e vice-presidente, respetivamente D. José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima, e D. Virgílio Antunes, bispo de Coimbra.

O Sínodo dos Bispos pode ser definido, em termos gerais, como uma assembleia de representantes dos episcopados católicos de todo o mundo, a que se juntam peritos e outros convidados, com a tarefa ajudar o Papa no governo da Igreja.

(Com Ecclesia)

Scroll to Top