Pelo padre José Júlio Rocha
A ponta de cima da freguesia era, por excelência, o lugar desconhecido. Conhecíamos razoavelmente a ponta de baixo porque íamos muitas vezes à Praia na “Lambretta” do pai ou na camioneta da carreira ou mesmo a pé. Mas a ponta de cima era sempre a subir e quem conhece a Fonte do Bastardo sabe que, se colocarmos um berlinde na ponta de cima, ele, provavelmente, vem parar à ponta de baixo, mais coisa menos coisa, que aquela freguesia é um plano inclinado. É por isso que a Fonte do Bastardo deve ser a única terra da Terceira que diz “vamos para cima para a Cidade”. Para o resto da ilha, a Cidade é sempre para baixo. Para nós, que vivíamos no centro do burgo, a ponta de cima era muito longe e muitos dos que lá habitavam até iam à missa à Ribeira Seca.
Foi lá que nasceram e medraram os “Benficas”. O Paulo, o Rui, o Marco e o Bruno. Martins todos eles. Sendo cerca de dez anos mais novos do que nós, os “Barbeiros”, e vivendo a uma distância razoável, não nos foi dado conhecê-los ou tê-los como amigos durante a infância. Isso foi mais quando eles começaram a vir para a escola, a fazer as primeiras comunhões e comunhões solenes na igreja, a passear com o pai nas touradas.
Por essa altura, andávamos a tentar converter os miúdos mais desprevenidos ao F C Porto, tarefa que não era demasiada, dada a onda de vitórias do clube azul nos anos oitenta. Era impossível converter os “Benficas” pelo simples facto de o pai, o Domingos “Benfica”, os ter calçado bem, tal como o nosso pai, no amor ao clube de coração. Não havia maneira. O pai, Domingos, benfiquista ferrenho, tinha o condão da bondade, que transmitiu aos filhos, e do sorriso fácil com que conquistava amigos. Nunca o vi alterado ou zangado, mesmo que o seu clube perdesse. Morreu repentinamente em 1993, ainda os filhos eram, quase todos, crianças, deixando a mãe, uma mulher forte e cheia de ternura, quase com os filhos por criar. A morte do Domingos “Benfica” fez chorar a freguesia.
Crescemos e a amizade foi-se consolidando a par das brincadeiras sobre futebol, nunca agressivas. Éramos quatro irmãos portistas. Eles, quatro irmãos benfiquistas.
Há mais de sete anos que esta ideia me vinha assolando a cabeça: porquê não combinarmos um almoço ou jantar os oito, eles com a camisola do Porto, nós com a do Benfica? Todos achámos graça, mas a ocasião nunca se proporcionou, até porque um de nós habitava no Porto e um deles em Portalegre.
Acontece que, na semana passada, todos os astros estiveram a nosso favor. Os dois irmãos distantes, por acaso, estavam na ilha. Combinámos o almoço para o domingo, no “Sorriso”. Cumprimentámo-nos todos como amigos. Sentámo-nos na mesa comprida. Estávamos um pouco embaraçados. Vestir aquela camisola, a camisola do adversário, do inimigo de estimação que tantas vezes desejássemos que perdesse e por muitos? O Hernâni ainda se aventurou: “Vamos vesti-la só no fim para a fotografia?”. “Não”, respondi. “É durante todo o almoço.” Sorrisos e toca a vestir as camisolas. Era estranhamente engraçado ver os “Benficas” com aquele azul e branco pelo tronco abaixo. Estranhos ainda mais nós, vestidos à Benfica, com o emblema escarrapachado junto ao nosso coração, o Hernâni a acrescentar um cachecol do Benfica (o Hernâni!!!) e falámos de futebol a refeição inteira sempre com o mesmo sorriso.
Porquê esta brincadeira?
Primeiro porque a amizade está acima de quase tudo. Sempre sentimos admiração e amizade pelos “Benficas”, gente simples, de sorriso fácil, amigos com que contar, amigos do amigo, sem nunca ofender ninguém. Não há clube que resista a uma verdadeira amizade.
Segundo porque, antes de classificar qualquer pessoa como sendo “comunista”, “fascista”, “ateu”, católico”, “padre”, “polícia”, “ladrão”, “pecador”, “branco”, “negro”, “bom” ou “mau”, ela é, primeiro que tudo, um ser humano, único e irrepetível, uma pessoa que merece a nossa amizade e respeito pelo que ela é e não pelos credos que professa.
Terceiro porque a nossa época é perigosa. Os extremismos que crescem a céu aberto estão a dividir as pessoas e há muita gente com muito poder que se aproveita disto para lançar a lama do ódio sobre o mundo. Estamos profundamente divididos em termos políticos, sociais, clubísticos, religiosos, e quando essas realidades dividem em vez de unirem, mais vale, mil vezes, trocar camisolas do que trocar insultos.
Estamos conscientes de que aquele terá sido, metaforicamente, um pequeno sinal profético: é muito mais aquilo que nos une do que aquilo que nos divide. Quisemos que o clubismo nos unisse mais. E uniu.