Por Carmo Rodeia
A cura do cego de nascença (Jo 9) revela-se hoje, no contexto do sínodo que a Igreja vive, como uma narrativa interessantíssima que requer ser relida. Ali encontramos uma discussão de Jesus com os judeus, que poderia hoje ser a discussão entre a Igreja e o mundo ou mesmo dentro da Igreja. Começa Jesus por dizer:“Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12). Frente à cegueira cultural-religiosa da época, que não é muito diferente da de hoje, Jesus mostra-se como a Luz na vida. Não pela palavra apenas mas pelo toque o que pressupõe duas coisas: o desejo de Jesus tem de ser correspondido pessoalmente por aquele a quem Ele toca.
Recordo aqui a narrativa deste versículo do evangelho de São João: enquanto Jesus caminhava, viu um homem que era cego de nascença e os seus discípulos perguntaram-lhe – porque assim era entendido à época – «porque foi que este homem nasceu cego? Por causa dos seus pecados ou por causa dos pecados de seus pais?» (cf. Jo 9, 1-2). A esta interpelação Jesus respondeu não ser nem uma coisa nem outra, mas para maior glória de Deus.
O cego curado é primeiro interrogado pela multidão admirada — viram o milagre e interrogam-no — e depois pelos doutores da lei, que interrogam também os seus pais. No final, o cego curado chega à fé, a maior graça que lhe é concedida por Jesus: não apenas de ver, mas de O conhecer, de O ver como «a luz do mundo» (Jo 9, 5). E, o mais curioso desta longa narração de João é a dicotomia: enquanto nos vários colóquios o cego se aproxima gradualmente da luz, os doutores da lei, ao contrário, afundam cada vez mais na sua cegueira interior. Fechados na sua presunção, já julgam possuir a luz; por isso, não se abrem à verdade de Jesus. E fazem de tudo para negar a evidência. Põem em dúvida até a identidade do homem curado, para logo negarem a obra de Deus, alegando que Deus não age aos sábados (sempre o homem a servir o sábado!); chegam até a duvidar que aquele homem fosse realmente cego de nascença. O seu fechamento à luz torna-se agressivo e acaba na expulsão do homem curado para fora do templo.
Ao contrário, o caminho do cego é um percurso por etapas, que começa com o conhecimento do nome de Jesus. Nada mais sabe dele; com efeito, diz: «Aquele homem que se chama Jesus fez lodo e ungiu-me os olhos» (v. 11). A seguir às perguntas insistentes dos doutores da lei, considera-o primeiro um profeta (v. 17) e em seguida um homem que está próximo de Deus (v. 31). Depois de ter sido afastado do templo, excluído da sociedade, Jesus encontra-se novamente com ele e pergunta-lhe se ele crê no Filho do homem. E a resposta do homem que fora cego é desarmante: «E quem é, Senhor, para eu crer nele?». Quando Jesus se dá a conhecer, revelando-lhe a sua própria identidade: «Eu sou o Messias», assim lhe diz, nesta altura, aquele que era cego exclama: «Creio, Senhor!» (v. 38), e prostra-se diante de Jesus. Há um desejo de fé mesmo na escuridão.
Às vezes a nossa vida, e a vida em Igreja, é semelhante à existência do cego que se abriu à luz, que se abriu a Deus, que se abriu à sua graça. Mas, por vezes, infelizmente, também a nossa vida , e a vida da Igreja, é um pouco como a vida dos doutores da lei: do alto do nosso orgulho julgamos os outros, e até o próprio Deus! Temos feito muito isso, vezes demais…Com as nossas certezas, com os nossos ensinamentos, com as nossas leis.
Jesus não cria dependência: ao cego, e a nós, diz-lhe que assuma a sua própria vida, que desça à água e se purifique. Jesus põe mesmo barro nos olhos do cego e diz-lhe que vá, que veja, que não tenha medo, que assuma a vida, mesmo correndo o risco de ser de novo rejeitado.
O sínodo, que a Igreja vive, é semelhante a este caminho do cego: convida-nos a abrir-nos à luz de Cristo para dar fruto na nossa vida, com humildade, paciência e misericórdia, todos juntos a partir da nossa condição de batizados, a caminhar juntos para saciar esta sede de vida que nos habita antes dela termos consciência.
Se pensarmos o sínodo como esta experiência de vida partilhada , em vez de pensarmos em conteúdos, orientações e conclusões talvez possamos viver uma igreja sinodal.
A gordura das palavras de que nos falava Eugénio de Andrade ainda ensombra o Espírito que persiste em manifestar-se e nós resistimos à sua revelação.
Depois de ler a síntese do que se passou no último mês em Roma, admito que aqueles que estavam à espera de conclusões possam ter ficado desapontados. Fala-se do processo, elencam-se interpelações e mostram-se pontos de vista que são variações sobre o mesmo tema. Seria necessário mais?
Continuo a acreditar que o caminho sinodal pode tornar a Igreja uma comunidade de escuta e de vizinhança, capaz de espelhar a participação, a inclusão e o cuidado, deixando-se converter ela própria pelo estilo de Deus. Naturalmente que isto tem mais hipóteses de acontecer, se a Igreja não for ocasionalmente sinodal, mas aceitar caminhar para uma Igreja estruturalmente sinodal. Como dizia Yves Congar, um dos teólogos mais eminentes do Concílio Vaticano II: “Não precisamos de uma outra Igreja, mas de uma Igreja diferente.”
Para isso, basta que cada um de nós se deixe tocar como o cego , depois de se lavar na piscina de Siloé.