Pelo padre Júlio Rocha
Costumo dizer que em Roma há mais padres do que gente. Por cá os padres são raros e, quando passa algum de colarinho eclesiástico, há sempre alguém que vira a cabeça e declara: “olha um padre!” Coisa rara nestas bandas. Não assim em Roma. Com as universidades, os dicastérios pontifícios, as casas-mãe de imensas ordens, congregações, institutos e conventos, a eclesialidade em Roma está sempre ao dobrar da esquina, onde não falta uma igreja, uma capela, um oratório. Padres por todo o lado: uns vestidos a rigoroso negro, sem uma mácula na sua farpela, outros de cores mais brandas, um cinzento, um azulinho claro na camisa, outros de batina com faixa púrpura, preta ou sem ela. Outros ainda sem sinal nenhum que os distinga como padres mas que, pela maneira de vestir, de andar, de falar ou só de estar, se vê logo, ao longe, quiçá melhor que os outros, que são padres.
Estávamos no início de 1993, pedalava eu pelos meus 24 anos (e já lá vão trinta…) e estava a dar os primeiros passos, de espanto e contemplação, pela mais bela cidade do mundo. Numa dessas manhãs frias, enfarpelei-me também eu à maneira, fato azul-escuro, camisa de padre em azul claro. Esperava-me uma celebração muito importante na minha Universidade. A gente gosta, às vezes, de se vestir bem, e – vá lá – uma vaidadezinha também alegra o espírito de vez em quando. Só a viagem do Colégio Português até à Universidade era uma aventura. Entre as várias possibilidades, decidi ir a pé até ao Ottaviano, a estação de Metro mais próxima, a dois quilómetros. Roma fervilhava em hora de ponta. Gente para baixo e para cima, carros a zarpar pelos “viali” fora, barulho, comércio, turistas, frio de Janeiro ou Fevereiro, que já me não lembro.
Atravessei a harmoniosa e imponente Praça de São Pedro, pejada de turistas a tirar fotos e, incrível, não vi ninguém a segurar um telemóvel, a falar ao telemóvel, a tirar selfies, a mandar mensagens. O tempo em que não havia telemóveis já pertence, acho, a uma certa pré-história, ou, pelo menos, aos tempos de antes de Cristo.
O Metro era um sorvedouro de gente. Com pressa, sem levantar os olhos, uns conversando, outros correndo, polícias armados. E aquela já tradicional pontaria dos transportes públicos em nunca chegar a horas. Com os autocarros ou com o Metro é sempre a mesma coisa: esperas meia hora, e, de repente, aparecem-te três no espaço de cinco minutos. Itália.
Esmagado como sardinha na carruagem, lá fui eu, agarrado ao varão. Cabeças a respirar para o ar, um mau cheiro a suor, a roupas frias, a estação, inundava-me. E eu tão bem vestido que ninguém deu por mim. O metro chegou à infinita Termini, estação imensa de comboios, linhas de metro, autocarros, táxis.
Entre a Termini e a Universidade vão uns bons seiscentos, setecentos metros. E, como todos sabemos, à volta das grandes estações de comboio aglomeram-se lugares manhosos, pensões decrépitas, vendedores ilegais nas ruas e nos passeios, pedintes sujos, sem-abrigo barbudos, vendedores de banha de cobra e, como não podia deixar de ser, uma boa dose de “damas de aluguer” que, polindo a calçada com os seus altos tacões, meias de rede e lábios extremamente coloridos, vão vendendo o seu corpo a qualquer homem que passe, por vezes com convites descarados.
A Via Gioberti é uma dessas ruas mistas, onde se vê um McDonad’s, dois ou três hotelzecos de meia tigela, gente deitada ao frio da manhã nos vãos das portas fechadas, e as primeiras prostitutas do dia, aquelas mais infelizes e feias, que não carburaram na noite anterior, ou então aquelas que são obrigadas pelos chulos a darem o corpinho quase 24 horas por dia.
Percorro a rua calmamente, de cabeça baixa. É então que se depara diante de mim um espécime humano feminino de fazer cair o queixo: uma bela rapariga, certamente mais nova do que eu, olhos de um azul único, cabelos naturalmente loiros num rosto todo ele correto, bonito e desabaladamente triste. Trazia os seus tacões altos e meias de rede, adornadas com um discreto sobretudo azul muito limpinho. Parou diante de mim com olhar ansioso. Deu-me uma fraqueza, provavelmente devido à tenra idade: o que dirá toda aquela gente ao ver um padre e uma prostituta a combinarem qualquer coisa no meio da rua?
Foi então que ela disse, a medo, num tom baixo e num sotaque de quem nada sabe de italiano: “Ucraina. Católica. Aiuto!” Ali estava eu, aperaltado como um príncipe, padre a caminho da liturgia solene, diante de uma menina que já vendia o corpo. Ali estava, diante de mim, não mais do que uma menina, católica, provavelmente enganada na desmembrada Ucrânia pós-soviética, comprada como escrava para a prostituição. Pedia-me socorro.
Não sei se chegou a meio minuto o nosso estranho encontro. Não disse nada, não sabia o que fazer e naquela altura. Com a desculpa, talvez, da minha falta de experiência, pedi licença e passei ao lado. Tentei calar a consciência com a possibilidade de passar outra vez por ali, já com outra orientação e informações úteis. Muitas vezes percorri aquela rua. Nunca mais a vi.
Digam-me: o que é que eu, puto há quatro meses em Roma, podia fazer?
E, no entanto, julgo que todos conhecem a Parábola do Bom Samaritano. Um homem jaz quase morto na valeta da estrada. O Evangelho é claríssimo: “Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo.”
É sempre triste um sacerdote que passa ao largo.
Este texto foi publicado esta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio