Por Carmo Rodeia
A experiência do mal é algo que atravessa as nossas vidas e nega-lo é entrar num falso moralismo que nos afasta de nós e dos outros. O mal, que tantas vezes vemos os outros fazerem, e a cujo o dedo apontamos, também é o mal que todos nós somos capazes de fazer a nós e aos outros, embora tenhamos dificuldade em assumi-lo porque somos demasiado resistentes à ideia de que podemos ser como Judas. E de facto podemos ser, sempre que somos mesquinhos, ciumentos, cruéis ou ressentidos. Sempre que fazemos escolhas como aquelas que os americanos fizeram em novembro.
Nos romances que escreveu Flannery O´Connor mostra um mundo monstruoso, de assassinos em série. De gente capaz de tudo. Esse mundo somos nós. Esse mundo é a América que permitiu uma escolha como esta.
A experiência do mal é comum a todos, atravessa-nos, corrói-nos, domina-nos em tantos momentos. E nós raras vezes estamos preparados para a aceitarmos.
No próximo dia 20, a Casa Branca vai ter um novo inquilino e a realidade que há uns meses atrás era quase, e apenas, uma hipótese de ficção concretizou-se: vamos ter alguém, cuja ação é imprevisível em todos e cada um dos momentos, a comandar os destinos da nação mais poderosa do mundo.
O cenário improvável com o qual a revista New Yorker, nos finais de setembro, brincava ao apresentar uma blague em que Trump iria ao encontro de Obama, até à Casa Branca, numa enorme limousine, tornou-se realidade. Crua e dura realidade!
Donald Trump perdeu as eleições junto dos americanos mas derrotou Hillary Clinton com o apoio dos “swing states”, que baralharam o colégio eleitoral.
Será o presidente mais velho de sempre a tomar posse num primeiro mandato mas é, sobretudo, a maior incógnita que o mundo alguma vez enfrentou.
As suas promessas não nos deixam tranquilos. Uma delas, e das mais consistentes, passa por construir um muro na fronteira com o México. E obrigar os mexicanos a pagá-lo. O republicano, que já foi apoiante dos democratas, não conseguiu o apoio unanime do seu partido e já só conta com o apoio de 39% dos americanos, segundo as últimas sondagens, jurou expulsar milhões de ilegais dos EUA logo nas primeiras horas da sua presidência. A mensagem é devolver os empregos aos americanos – expulsando os imigrantes ilegais e atraindo as empresas de volta ao país com uma redução nos impostos. Outra promessa é a de acabar com a reforma da saúde de Obama, o Obamacare, que procura dar um seguro de saúde a todos os americanos.
Volto a Flannery O´Connor e ao seu livro “No Território do Diabo”. O título é sugestivo para os dias que aí vêm.
Meryl Streep, quando na passada semana subiu aos palcos para receber mais um globo de ouro (entre 29 nomeações e 8 globos arrecadados além dos 2 Emmy, os 2 Bafta e os 3 oscares), lembrou que o “desrespeito convida ao desrespeito; a violência incita à violência”.
Esta verdade é tão velha quanto a nossa existência. Ainda assim, o presidente mais velho de sempre não hesitou em correr para o twitter, qual teenager, a responder de forma sobranceira, dizendo que Meryl Streep “é uma atriz sobrevalorizada”. Fê-lo com Meryl Streep mas fá-lo sempre quando se sempre atacado por opiniões contra si, contra as suas políticas ou simplesmente contra aquilo que defende.
No último discurso antes de deixar a Casa Branca, em Chicago, Barack Obama lembrava que a democracia “pode cambalear quando fica entregue ao medo”. Foi o que aconteceu em novembro, na América, permitindo que Trump vencesse. É o que se vai acentuar, a partir de sexta feira, quando tomar posse e começar a tomar decisões.
O mundo merecia outra coisa…em nome do bem, para variar.