Dos meus 50 anos de sacerdócio, quarenta e seis foram vividos fora dos Açores.
Há quase outros tantos estou encardinado em Lisboa e por isso poderia alguém, ou eu próprio, pensar que a Igreja nos Açores não me interessa ou não me diz respeito. Nem eclesial nem pessoalmente seria lógico sentir-me distante da Igreja onde nasci e me ordenei. Mas também sempre senti que não me competia intrometer-me nos dinamismos internos, nem nas formulações pastorais da Diocese de Angra. Não estou arrependido nem da proximidade nem da distância que mantive.
Dito isto acrescento que nunca me distanciei nem desinteressei nos diversos tempos dos itinerários que a comunidade dos Açores percorreu ao lado das outras Dioceses do país e dentro da eclesialidade a que todos estamos cada vez mais ligados. Nesse sentido, não há nenhum recanto do mundo que não nos interesse e não nos diga respeito. Basta ser Igreja.
Acho que foi esse um dos pontos comuns a todos os meus diálogos sobre os caminhos pastorais da Igreja nos Açores: recusar o isolamento sem nunca deixar de afirmar as potencialidades cristãs da sua história e dos seus percursos. Se a autonomia regional foi um velho desiderato atingido a partir dos acontecimentos de 1974, a Igreja dos Açores nunca foi “região autónoma” porque nunca poderia sê-lo. A sua fonte e o seu projeto envolvem-se numa outra comunhão e num olhar mais alongado, face ao que é a sua inteira pátria, um Reino que convida todos para o grande banquete da vida e para uma realidade que ultrapassa todos os horizontes políticos,geográficos ou culturais. Por isso, a Igreja nos Açores é por natureza aberta ao mundo inteiro. Mas tem dimensões nos seus planos pastorais que vão muito para além das Ilhas, pois muitos dos seus filhos se encontram espalhados pelo mundo. Sendo assim e por ter um património rico e humanamente marcado por valores e sinais característicos, não pode deixar perder o laço também cristão, que continua a vincular os açorianos noutros quadrantes do mundo que vivem e celebram a sua fé num estilo inequivocamente açoriano. Por isso o ser Igreja nada enfraquece, pelo contrário, reforça o vínculo que prende cada açoriano à sua terra.
A universalidade da Igreja através duma atenção redobrada por cada diocesano que anda pelo mundo é uma forma concreta de levar o Evangelho a uma das periferias mais complexas da Igreja e da sociedade de hoje: a emigração. E, aqui surge uma consideração inevitável: a religiosidade popular. Foi esse código secreto do povo que tornou possível a forma açoriana de ser cristão, não apenas espalhada um pouco por todo o mundo, mas como ponto de partida para uma expressão açoriana da fé em lugares bem diferentes do mundo. A devoção ao Espírito Santo e ao Senhor Santo Cristo, para dar dois exemplos, foram duas bandeiras- por muitos consideradas como objecto de periferia subdesenvolvida- decisivas para as comunidades chegarem ao essencial da sua fé, alimento do seu sentido comunitário e patriótico, elemento que fortaleceu e fortalece a esperança nos sacrifícios quase extremos da diáspora. Por isso urge nesta celebração lançar um novo olhar sobre esta periferia que se sente desafiada pelos novos tempos, pelas gerações jovens que já viajam noutro planeta e pelos que se sentem perdidos entre o velho e o novo mundo que os pode lançar outra vez na margem.
Ser emigrante é andar pela periferia. E a fraternidade das periferias deve entoar em conjunto o hino de acção de graças nos 480 da Diocese de Angra.
Esta não é a única periferia. Dentro da própria Diocese há muitos que emigraram para zonas distantes da sua matriz espiritual e se sentem mergulhados em novos vazios que a sociedade foi oferecendo. Muitos não descobriram os novos sinais dos tempos como elo de aproximação aos valores universais que a proposta cristã continua a defender. Muitos zangaram-se com a Igreja e vagueiam por desertos sem uma fonte que mate a grande sede da vida. Merecem um olhar especial e uma conversão de linguagem. A Igreja não evangeliza se o seu discurso é hermético, é autista. E,talvez os que deveriam estar em primeiro lugar: os que fugiram para a zona cinzenta da vida porque ninguém deu importância às suas grandes carências e até são considerados responsáveis pela própria pobreza.
Emigrados do pão, do conforto, do prestígio social e do mínimo de dignidade na existência, habitam o planeta dos esquecidos como se fosse a ilha maldita para onde partiram por inépcia ou desmazelo. Ninguém os pode esquecer. E a Igreja tem de reenviar-lhes uma carta de chamada para que voltem à terra da dignidade a que têm direito.
Pe António Rego