Pelo Padre José Júlio Rocha
Há uma fotografia, que vi há alguns anos e que me não sai da cabeça de cada vez que leio algumas páginas do Evangelho. Representa um cardeal, sentando num trono imenso e resplandecente de vermelho e ouro. O cardeal posa, cansado, sob o seu barrete cardinalício bem colocado. Sobre os ombros, cai-lhe uma preciosa romeira de arminho e, por baixo dela, caindo para o chão e estendendo-se por uns bons sete ou oito metros, uma capa magna, em seda escarlate, a fazer lembrar a pré-histórica entronização da rainha Isabel II. Por debaixo da capa ainda repousa uma sobrepeliz branca, rendilhada até ao infinito. Depois, a comum batina vermelha dos cardeais, a resplandecer de engomada. As mãos postas ostentam umas luvas brancas debruadas a ouro e, por cima dessas luvas, um anel poderosamente dourado. À sua volta, alguns eclesiásticos vestidos a rigor, todos de mãos postas e com sorrisos benévolos.
De cada vez que me lembro dessa foto ou a vejo, bate-me sempre na cabeça aquela pergunta incómoda e imprescindível: o que é que tudo isto tem a ver com Jesus? Sim, esse Jesus que não tinha onde reclinar a cabeça e que, ao enviar os discípulos, recomendou que não levassem bolsa nem alforge nem duas túnicas.
É certo que a Igreja é intrinsecamente hierárquica. Mas que tipo de poder deve existir na Igreja senão o serviço? O abençoado papa Gregório Magno já se dizia “servo dos servos de Deus”, entendendo assim a hierarquia como forma de serviço e não de poder. A esse respeito, lembro-me da terceira tentação de Jesus no deserto, em que o Diabo O leva a um lugar onde se avistam todos os reinos da Terra e diz: «Dar-te-ei todo este poderio e a sua glória, porque me foi entregue e dou-o a quem me aprouver. Se te prostrares diante de mim, tudo será teu.» É mais ou menos isto: toda a espécie de poder, quando não é serviço, é obra do mal.
Há ainda uma célebre passagem do Evangelho em que Tiago e João, filhos de Zebedeu, pedem a Jesus que, no Seu Reino, lhes conceda sentarem-se, um à Sua direita e outro à Sua esquerda. Os outros apóstolos ficam indignados com os irmãos e gera-se aquela confusão que costuma acontecer quando todos querem o primeiro lugar. Jesus dá-lhes uma lição exemplar: «Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo.»
Não poucas vezes Jesus aconselha os Discípulos a não se comportarem como os fariseus, que gostam de túnicas compridas, de serem cumprimentados nas praças, e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas, usam berloques e gostam de tocar a sineta quando dão esmola. Acrescento a isso a horda de ocasiões em que Jesus afirma que quem se faz humilde será exaltado e quem se exalta será humilhado. Aconselha-nos a receber o Reino dos Céus com a humildade e a simplicidade das crianças. As páginas deste jornal não seriam suficientes para abarcar todos os gestos e ditos de Jesus que convidam à pobreza evangélica, à simplicidade de coração, a não servir a Deus e ao dinheiro, a ser livres e simples como as aves do céu ou os lírios do campo, a não ter a atitude do fariseu no templo mas do publicano que bate no peito, a não se sentar nos primeiros lugares, e por aí abaixo.
Célebre é aquela invetiva contra os fariseus: «Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque sois semelhantes a sepulcros caiados: formosos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos de mortos e de toda a espécie de imundície! Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos outros, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade.» E é seguida deste conselho aos discípulos: «Quanto a vós, não vos deixeis tratar por ‘mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis ‘Pai’, porque um só é o vosso ‘Pai’: aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por ‘doutores’, porque um só é o vosso ‘Doutor’: Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo.»
Que imagem de Igreja queremos dar diante de tudo isto? Um bispo houve que chegou a dizer: “Aqui vem o bispo, cheio de glória, cheio de poder. Nada para si, tudo para Deus”. Não concordo, de todo, que o poder e o esplendor na Igreja sirvam para maior glória de Deus. Deus quer os nossos corações e não as nossas vestes. Quem faz parte da Igreja deve fazê-lo sempre com a simplicidade de quem serve. Se sempre fosse assim, não haveria tanta gente a tentar trepar pela hierarquia acima. É um forte contratestemunho a ambição dos títulos eclesiásticos, das prebendas e dos lugares de destaque, que contribuem dolorosamente para uma Igreja mais clericalizada, onde só a hierarquia move e dirige, enquanto a grei deve aceitar ser governada e cumprir com submissão as ordens dos que regem.
A Igreja em Portugal vive uma encruzilhada histórica na sua hierarquia. Algumas dioceses, como a nossa, estão vacantes e prevê-se a ordenação de vários bispos. Contam-se espadas pela calada, movem-se influências, fala-se deste e daquele e muitos estarão pensando que, finalmente, vai chegar a sua vez. Isto de ser bispo é uma honra rara e um título social que não se vende por um prato de lentilhas. Mas ostentar títulos e roupas imponentes em nome de um Jesus que terá andado descalço é coisa que, a mim, me assiste pouco.
“Quero uma Igreja pobre para os pobres”, disse o Papa Francisco.
É só isto.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.