Por Carmo Rodeia
Em estado de choque, continuo a digerir a vitória de Jair Bolsonaro na primeira volta nas eleições para a presidência do Brasil, e a temer a confirmação dessa vitória no próximo dia 28 de outubro, depois da extraordinária votação no primeiro “turno”,em que obteve 46,03% (quase 50 milhões de brasileiros votaram nele!). Dizem as contas passadas que nunca um candidato vencedor na primeira volta foi derrotado na segunda e este até teve mais do dobro dos votos…
Em abono da verdade o sublinhado do choque não passa disso mesmo pois, nos últimos meses, temos vindo a ser brindados com resultados semelhantes noutros lugares, mas igualmente perturbadores.
O que aconteceu no Brasil foi o mesmo que aconteceu noutros países como os Estados Unidos ou a Suécia, a Polónia, a Hungria ou a Itália: foi a rejeição da classe política que nos tem governado ao longo de décadas e que foi enxotada do poder por indecente e má figura, envolvida em casos de corrupção e descrédito, mas também o sucesso de um discurso populista que divide, semeia o ódio e sedimenta as desigualdades.
Os principais efeitos deste tipo de eleição, como vimos em casos como os da Venezuela, da Itália, e do Peru do início dos anos 90, em que alguém de fora do sistema foi eleito para primeiro ministro ou presidente, são de enfraquecimento imediato das normas democráticas pelas quais os políticos tradicionais se guiam. E isto leva a uma erosão da democracia, pondo-a até em causa.
Estes fenómenos populistas transformam a gestão da coisa pública a seu favor, atacando as outras instituições sobretudo se lhes são desfavoráveis, apelidando-as de forças de bloqueio. E as consequências só não vão além do insulto porque as instituições são robustas, como nos Estados Unidos. O mesmo já não se pode dizer na América Latina, onde os fenómenos `caudillistas´ têm sempre uma geometria mais variável.
Em 2017, numa entrevista ao jornal alemão “Dei Zeit”, o papa Francisco falou contra o populismo alertando para as ameaças e perigos que ele oferece.
“O populismo é mau e no final acaba mal, como no-lo mostra o século passado”, disse advertindo para as situações criadas pelo nazismo, pelo estalinismo e outros `ismos´ que deram cabo de milhões de vítimas.
“A Alemanha estava desesperada, a crise económica de 30 era uma calamidade… e um jovem disse ‘eu posso, eu posso, eu posso’. Chamava-se Adolf, e isto acabou assim, não? Conseguiu convencer o povo de que ele podia. Por trás dos populismos existe sempre um messianismo, sempre. E também uma justificação: preservar a identidade do povo”, alertou, destacando como outros, em sentido bem diverso, imaginaram a unidade europeia, com uma ideia “não populista”.
“Imaginaram uma fraternidade de toda a Europa, do Atlântico aos Urais. E estes são os grandes líderes – os grandes líderes – que são capazes de levar em frente o bem do país, sem estarem eles no centro. Sem serem messias”, observou.
Francisco tem tido posições públicas muito assertivas, dizendo o que tem de ser dito. O mundo cita-o mas não pratica o que ele defende. A desconformidade é cada vez mais visível. E ele próprio não esconde a zanga: “Fico zangado quando a Igreja, a Santa Madre Igreja, a minha mãe, a minha esposa, não dá um testemunho de fidelidade ao Evangelho. Isso faz-me mal”, disse ainda na referida entrevista ao jornal alemão.
Francisco é a grande referência moral do mundo. Católico e não católico. Como dizia esta segunda feira Pedro Mexia: “Francisco é uma fonte de esperança perante muitos que tentam inquinar as águas”. Fora e dentro da Igreja, infelizmente, malbaratando o capital de esperança que o pontífice argentino trouxe à Igreja, mesmo numa sociedade laicizada.
Ainda bem que a Igreja não é uma democracia…