Pelo padre José Júlio Rocha
Regresso a um assunto e a um autor que a mim me parecem pertinentes nesta encruzilhada. Já escrevi sobre isso noutras ocasiões, mas não será despiciendo regressar e olhar para eles de uma nova perspetiva. Refiro-me às três tentações de Jesus no deserto e à forma como o incomparável Dostoievski abordou o assunto. É a minha eterna amada história da “Lenda do Grande Inquisidor”, capítulo inserido na longa-metragem em papel a que o autor deu o nome de “Os Irmãos Karamázov.”
É na Sevilha início do século XVI, a bela andaluza conquistada pelos castelhanos, que vive o ancestral inquisidor-mor do Reino, “um velho quase nonagenário, grande e direito, de rosto ressequido, os olhos cavados no fundo nas órbitas, de onde brota um clarão incandescente como fogo.” Num desses dias ardentes de Sevilha, Jesus volta a pôr os pés na terra, visitando-a 1500 anos depois. Jesus nunca fala durante a história de Dostoievski. Limita-se a fazer um milagre e, em silêncio, a multidão segue-O. Só que o Inquisidor manda dispersar o povo e prender Jesus nas masmorras da Inquisição. À noite, o Inquisidor vai falar com Jesus num prolongado monólogo. “Porque vieste inquietar-nos?” Pergunta ele a Jesus. Sim. Jesus, mesmo no silêncio, só vinha inquietar a Igreja.
O Inquisidor parte então para um discurso sublime. Deus Pai tinha criado o homem assim, frágil, sujeito à lei do mais forte, que só com a rédea curta podia ser conduzido, obedientemente, para onde quisessem os seus chefes. É então que o Inquisidor usa a passagem das tentações no deserto para acusar Jesus de não ter obedecido ao Demónio. Convenhamos que as três tentações não se resumiram ao deserto: representam uma alegoria da própria vida de Jesus e das tentações – bem realistas – de poder e domínio que poderão ter passado pela Sua mente.
“Porque não transformaste as pedras em pão?” O pão significa a fartura, a abundância, o conforto, o dinheiro. Em vez de encher os bolsos e as barrigas aos fiéis, Jesus preferiu atraí-los pelo amor… Mas, para a humanidade, o que é que vale o amor ao pé de um bom dote de riqueza, da barriga cheia, da abundância e da fartura? O povo prefere o dinheiro ao amor, Jesus!
“Porque não Te atiraste do alto do pináculo do Templo?” Seria um espetáculo circense, Jesus a cair da 50 metros e a levantar-se, sacudir o manto e seguir. Seria um espetáculo digno de um deus, todos O aplaudiriam e seguiam, porque viam, claramente vistos, os sinais, os milagres, o poder sobre a vida e sobre a morte. Jesus preferiu que O seguissem pela fé… Mas a fé sem sinais não é para este povo. Ele pediu, pede e pedirá sempre sinais e a fé é uma aventura demasiado violenta perante o silêncio de Deus. A Igreja do Inquisidor inventava milagres para manter o povo crente e atrelado.
“Porque não aceitaste os reinos do Mundo que o Demónio Te oferecia?” Restava a Jesus a possibilidade de dominar o povo pela força, pela ordem autoritária, pelo medo do inferno, pela rédea curta, povo manso e seguro, sereno e mandado, com uma canga ao pescoço, mas satisfeito. Ora, Jesus preferiu que O seguissem não pela força mas em liberdade. O quê? Não há nada que atemorize mais o povo do que a liberdade. Até quando o Povo de Deus foi libertado da escravidão e andou pelo deserto, revoltou-se contra Deus e Moisés porque os fez sair do Egipto, onde eram escravos mas tinham ao menos com que comer, e agora estão num deserto, livres mas sem comida, água, conforto. O povo odeia a liberdade.
Pão, milagres, segurança. Em vez de amor, fé, liberdade. Estas são duas maneiras de viver. Jesus propôs-nos uma. Não será que o caminho proposto por Jesus não passa de uma condição que só os fortes conseguem percorrer? Quem prefere o amor ao pão, a fé ao espetáculo, o amor à segurança?
A questão é que Jesus exige de nós o nomadismo da alma. E ser-se nómada é atravessar um deserto chamado vida.
A treze de março de 2013, fez anteontem onze anos, Mario Jorge Bergoglio aceitou chamar-se Francisco e a Igreja entrou em desassossego. O seu pontificado não se rege pelo medo de perder, pela obsessão da ordem e da dogmatização, pela rigidez de um poder que tanto mal fez à igreja. Ele quer uma Igreja sinodal, que caminha em conjunto, e isto é preferir o amor ao conforto, a fé ao espetáculo, a liberdade à segurança.
Hoje a Igreja e o mundo debatem-se nessa guerra surda entre a liberdade e a segurança. E não é raro o cenário de o povo oferecer a liberdade num prato de lentilhas em troca de uma segurança que o mantenha quieto, satisfeito, descansado, inútil. E sem entender que, sem liberdade, o resto é uma farsa a que alguns chamam vida. Não se ama se não se é livre nem se vive se não se é livre. A liberdade, a incomensuravelmente profunda liberdade, é o alicerce da vida. Mas custa!
Papa Francisco: o desassossego que trouxeste à Igreja tem sido uma inquietação. Obrigado.