Por Carmo Rodeia
O evangelho do IV Domingo do Advento refere-se repetidamente ao projecto de vida plena e de salvação definitiva que Deus tem para nós, cada homem e cada mulher, que assim o queira perceber e adotar na vida.
O texto da anunciação é um texto formidável e que pode, e deve, ser lido sob vários pontos de vista. O primeiro deles é o da liberdade. Quando o anjo revela a Maria o plano de Deus, e Maria coloca algumas questões, não é para se tornar difícil mas para compreender algo que lhe escapava, porque o projecto que lhe estava a ser proposto era arrojado e certamente ir-lhe-ia causar alguns, para não dizer muitos, dissabores. Maria, casada com José, iria ter um filho por obra e graça do Espírito Santo. E como é que o seu marido iria receber a notícia?
Portanto, é legitimo dizer que o diálogo entre o Anjo e Maria há-de ter sido bastante perturbador. Mas, à medida que a conversa flui, Maria mesmo que não tenha percebido tudo, aceita fazer-se como que parceira desta história. Com toda a disponibilidade. E, com todas as consequências, junto de José, que acabou por aceitar ser igualmente parte integrante desta história, rejeitando o papel de marido enganado.
Uma vez mais: não há de ter sido fácil para nenhum deles, até pelo contexto em que viviam.
Segue-se o nascimento do filho. Não estavam em Nazaré, sua terra natal. Estavam fora de casa. Uma mulher grávida e em trabalhos de parto não é uma mulher que se possa acolher em qualquer lugar. Eles são estrangeiros, numa terra que não é a sua e que não é sequer hospitaleira. Acabam por dar à luz num estábulo, no mais humilde dos espaços, rodeado de animais. E depois a Mãe, não tendo outro lugar, aconchega o filho na manjedoura, onde os animais se alimentam; um sitio sujo mas quente, porque é a mesa que o coração também fica confortado.
Estes dois episódios dizem quase tudo a um cristão e Maria é a mestra, na sua maternidade disponível.
A aceitação de uma gravidez não planeada de acordo com os costumes da sociedade, valorizando a vida e pondo em risco a reputação dela e a do marido; uma família que não tem onde reclinar a cabeça porque é estrangeira; um filho que nasce ao pé de animais, no mais pobre dos sítios pobres e impuros e que por eles é aquecido; que é deitado numa manjedoura onde os animais comem como se de alimento se tratasse…
Afinal, qual foi a parte deste espírito de Natal, que é todo um programa de vida cristã que nos escapou e continua a escapar?
Continuamos a não aceitar como válidas, revelando uma enorme falta de amor e de caridade, todas as famílias que os tempos modernos trouxeram e que são diferentes deste modelo; continuamos a olhar os migrantes como estrangeiros e mal vindos; erguemos muros em vez de estendermos os braços; votamos em partidos que continuam a defender o oposto do Evangelho, elegendo deputados, que até são decisivos para formar governos; continuamos a considerar que a comunhão é apenas para uma certa elite de fieis; olhamos os pecadores com sobranceria… E, “yet”… Dizemos que vivemos tão intensamente o Natal.
No meu dia-a-dia sinto que aqueles que se acercam da salvação explicam-me melhor o que é acolher a salvação e nós, que nos julgamos santos, dispensamos o próprio Jesus, empanturrados pela espuma dos dias do consumo, das luzes e das tranquitanas.
O Natal é mais do que uma conversa e um laço, embora também possa ser isso. Se a conversa for um encontro e o laço uma união.
Boas festas e um Santo Natal!