Pelo padre José Júlio Rocha
Revi com agrado, aqui há dias, um filme que sempre me apaixonou, desde o longínquo ano de 1998, quando o vi pela primeira vez. “Braveheart”, a famosa longa-metragem de Mel Gibson, que trata da Escócia do século XIII e do seu mais lendário e amado herói, William Wallace. Devo dizer que adorei a Escócia da única vez que estive lá, em 2019, com uma excursão de amigos, em agosto, mês relativamente fresco se comparado com os nossos agostos mais a sul. Os escoceses são um povo desmedidamente simpático e acolhedor, carregado de tradições, de castelos medievais em ruínas com paisagens belas à volta, de kilts à venda em todos os lugares, o som amplo de uma gaita-de-foles está sempre a ouvir-se vindo de algum lugar. Desde o monstro de Loch Ness até ao mítico campo de St. Andrews, da beleza pouco igualável da capital, Edimburgo, cujas rosas ferem, com a sua cor, os olhos, aos inumeráveis “pubs”, onde, depois das oito, se reúne a fauna escocesa para beber uma cerveja, tomar um whisky, jogar uma partida de bilhar ou de dardos e falar com toda a gente, particularmente com desconhecidos, que eles, simpáticos e barulhentos, tão bem sabem receber. Enamorei-me da Escócia. Por isso, desde esse ano, já terei visto, pelo menos três vezes, o filme de Mel Gibson.
A longa-metragem oferece com razoável precisão o ambiente físico daquele tempo, as casas de pedra e colmo, a vida semisselvagem das aldeias das Terras Altas, os hábitos alimentares, as roupas muito próximas à realidade histórica. Sofre de uma falha que quase todos os filmes e livros “históricos” sofrem: a adaptação da mentalidade à época em que decorrem as cenas. A maior parte das personagens pensam e falam com parâmetros do século XX. O filme histórico de grande dimensão que, para mim, mais se aproximou da mentalidade do seu tempo, Idade Média, foi “O Nome da Rosa”, ou não fosse o medievalista Umberto Eco quem escreveu o livro que veio a dar no filme. Os diálogos de “Braveheart”, as ideias dominantes, os conceitos como o de liberdade, de guerra e de paz, de dignidade humana, de amor e paixão, são todos decalcados do século XX. Na Idade Média não se pensava daquela maneira.
Este filme e muitas outras obras são um sintoma da forma como olhamos para o passado. Vemo-lo com as estruturas mentais e culturais do nosso tempo. Tendemos a julgar a História, a apontar-lhe o dedo, como se nós, vivendo naquele tempo, pensássemos à maneira de hoje. O facto de os valores a que damos importância no século XXI serem muito diferentes dos de épocas anteriores, sobretudo antes da “marca” da Revolução Francesa, não nos dá o direito de destruirmos a História ou de a enviesarmos, considerando-nos a flor da farinha da evolução humana, o “fim da História”, o ápice do progresso. Daqui a cinquenta anos, se o mundo ainda for mundo, hão de rir-se de muitos dos nossos valores e das nossas lutas. Tenhamos a humildade de nos colocar no lugar certo da História.
Um dos valores que hoje consideramos fundamental, plasmado na Carta dos Direitos Humanos, é o da educação universal a que todos têm direito. Não era assim no passado. É uma conquista pós Revolução Francesa. A educação, o saber ler e escrever, era, na Idade Média, destinado a uma pequena elite, mais burguesa do que nobre, porque aos nobres competia pegar em armas, não ler.
A Igreja, grande educadora, também viveu as suas vicissitudes históricas nesta matéria. A Reforma de Lutero trouxe uma mudança veloz na literacia e na educação. A tradução da Bíblia para o alemão permitiu o seu acesso a um grande número de pessoas: a primeira tradução do Novo Testamento, há 500 anos, teve uma tiragem, brutal para aquela época, de três mil exemplares. Isto permitiu o acesso de todos os que pudessem à Sagrada Escritura, o que exigia aprender a ler.
A Igreja, por seu lado, preocupou-se mais em preservar a fé dos católicos, defendendo-a dos perigos do protestantismo. Mais valia que as pessoas não procurassem a verdade pela sua própria iniciativa, que a aprendessem, obedientemente, de quem sabe ensinar. Enquanto se promoviam devoções tradicionais, o culto das imagens e, sobretudo, da Sagrada Eucaristia, questões postas em causa pela Reforma, renunciava-se à educação do povo: o saber é um contrapoder, é um perigo, porque traz o monstro da desobediência. Aquela grande maioria da Igreja a que hoje chamamos leigos permanecia, salvo raras exceções, numa predominante passividade e ignorância: se não souberes nada, se não vires nada, se não disseres nada vais para o céu…
Esta conjuntura ainda dominava no início do século XX, como podemos bem apreciar na Encíclica “Vehementer”, do insuspeito São Pio X:
“A Igreja é, pela sua natureza, uma sociedade desigual; compreende duas categorias de pessoas: os pastores e o rebanho. Só a Hierarquia move e dirige. O dever do rebanho é aceitar ser governado e cumprir com submissão as ordens daqueles que os regem.”
Se já naquele tempo esta sentença gerou polémica, imaginemos hoje. O certo é que, à exceção do genial aparecimento da Ação Católica nos anos 20 de Pio XI, pouco se conseguiu fazer na formação e dignificação do laicado. A abertura do Concílio Vaticano II aos leigos ainda não deu frutos. E hoje temos uma humanidade que se cultivou, cuja literacia disparou nos últimos séculos, mas vive o vazio da cultura e literacia cristãs.
A conjuntura mudou, e muito. As estruturas nem tanto. E o facto é que, apesar de tudo o que se tem feito, a Igreja continua profundamente desigual, clerical, amarrada a um passado que cultivou com afinco.
Nesta “tarde do cristianismo”, enquanto temos a tentação de lamber as feridas, tenhamos a consciência, límpida, de que os leigos são o futuro da Igreja. E se estão silenciosos, passivos ou ausentes, não procuremos culpas, busquemos soluções.
*Este artigo foi publicado esta sexta-feira na edição do Diário Insular, na rubrica RUa do Palácio