Por Carmo Rodeia
“Não se pode acreditar em Deus e explorar o irmão, não se pode acreditar em Deus e ser mafioso. Quem é mafioso não vive como cristão, porque blasfema com a sua vida o nome de Deus-amor”.
Hoje, ao acordar vi esta citação do Papa Francisco, feita durante a sua visita ontem, sábado, à Sicilia, onde prestou homenagem a todas as vítimas da Máfia e voltou a deixar uma mensagem forte ao mundo.
Num contexto diferente, e com outros contornos e motivações, fez-me lembrar a afirmação de um outro Papa, em Fátima, em maio de 1967, aquando da celebração do Cinquentenário das Aparições: “Homens sede homens”.
E, dei comigo a pensar o que é isto da humanidade. Não numa perspetiva conceptual ou filosófica mas no sentido prático. Porque hoje falta humanidade; falta, sobretudo, que as pessoas tenham consciência do que foram, do que são e do que têm para ser e dar, de forma credível e consequente.
O Papa Francisco tem razão e o problema que ele levanta é o do testemunho e o do comportamento consequente: em teoria não podemos defender algo que depois não praticamos, seja lá porque motivo for. Isto é, por outras palavras não se pode ser boa pessoa se não se for inteiro. E, ser inteiro, é muito mais do que ser perfeito. A imperfeição desinstala-nos e convida-nos ao caminho, por vezes entre veredas apertadas é certo, mas sempre disponíveis para acolher a novidade. A perfeição pelo contrário instala-nos. Somos tão perfeitos que não precisamos de mudar, nem em função do outro nem em função das circunstâncias. É como se estivéssemos a arrumar a nossa casa e deitássemos fora tudo o que está partido, só porque é velho ou destoa da harmonia que criámos. Outro dia, andava nas arrumações de verão ( e no verão o desejo de limpeza e de frescura parece que é maior) e, na limpeza de um dos armários, deparei-me com uma taça chinesa que a minha mãe me ofereceu, e que nas mudanças ficou partida. Estava arrumada e escondida para que não se visse e não destoasse da perfeição de outros objectos semelhantes. Afinal, era uma taça escaqueirada. A minha primeira tentação foi deitá-la fora, mas dei comigo a colar bocadinho a bocadinho e recompous a velha taça partida. Durante a colagem fui-me lembrando de cada pedaço de tempo passado, não com saudosismo nem com vontade que ele regressasse mas com a certeza de que faz parte da minha própria história, da qual não me quero desfazer. Tal como aquela taça já não é perfeita mas é inteira também a nossa vida tem que ser reconstruída todos os dias, com todas as imperfeições e com todas as colagens. Compreender isso é condição necessária para seguirmos em frente, no amor e na amizade.
A perfeição encontramo-la nos catálogos e na idealização das coisas que fazemos. O mais avisado é aceitarmos as nossas imperfeições e todos os dias estarmos disponíveis para nos reconstruirmos…sem abdicar contudo dos valores e do nosso património.
Carl Jung afirmava que o mais importante é ser inteiro. Conheço poucas, pouquíssimas pessoas inteiras, mas tenho o privilégio de as ter por perto. São essas que me inspiram. São essas que me servem de modelo. São essas pessoas improváveis que nos aconchegam e dão ânimo para prosseguirmos… mesmo errando e errando sempre, cada vez melhor porque também nos inventamos no erro, se o reconhecermos e admitirmos. Ao contrário da perfeição a imperfeição é uma história aberta que permite o recomeço. E recomeçar é bom!
Deus não escolheu os perfeitos: escolheu todos, sobretudo os mais frágeis. Mas também nos ensinou (e ensina!) que o orgulho, a auto-suficiência, a auto-justificação, o isolamento, a violência, o delírio do poder são obstáculos maiores à vida com Ele.
No Elogio da Sede, o livro onde estão as catequeses desenvolvidas esta Quaresma, D. José Tolentino Mendonça elegeu a inflexibilidade e a presunção como dois grandes obstáculos à vida em Deus, que para quem O tem no centro da sua vida, significa na vida com os outros.
A sede, que é como quem diz o reconhecimento da nossa imperfeição, em certo sentido, humaniza-nos. É preciso muito tempo para perder a mania das coisas perfeitas, para vencer o vício de sobrepor as falsas imagens à realidade. Como escreve Thomas Merton, diz o arcebispo, Cristo quis identificar-se com o que não gostamos de nós próprios, dado que tomou sobre si a nossa miséria e o nosso sofrimento. S. Paulo, por seu lado, testemunha a fé com uma hipótese paradoxal: “Quando sou fraco é então que sou forte”.
Porque é que as pessoas hão de achar-se tão perfeitas, e com base nessa pseudo perfeição querer poder a todo o custo?!