É a guerra que faz história, não a paz

Pelo padre José Júlio Rocha

No início deste agosto passei oito dias no sul de França. Fui numa excursão de amigos, 45, que costumam, de anos a anos, organizar uma destas viagens pela nossa incomparável Europa. Marcada para 2020, a pandemia catapultou-a para este ano.

Fazia um calor desgraçado e as notícias eram quase todas iguais às de Portugal: a canícula que grassava na região, a seca de meses, que mantém albufeiras vazias e obriga à contenção nos gastos de água, os incêndios que arrasam florestas e mato, mesmo sem os pinheiros ou eucaliptos que dominam a paisagem portuguesa. Quando o calor e a seca chegam, não há árvore que resista. Notícia constante era o preço dos combustíveis que estavam a tornar a vida insuportável com o encarecimento de tudo. E a guerra. Em França, tal como em Portugal, já não se ama a Ucrânia tanto, já não se detesta tão grandemente a Rússia de Putin. O fervor idealista de quase todo o mundo, apaixonado por uma Ucrânia mártir nas mãos do iníquo agressor, já não é o que era. A guerra a entrar todos os dias pelo ecrã adentro também cansa e os jornalistas sabem disso, já percebem quando é que o telespetador pode mudar de canal. A guerra está a ir-nos ao bolso e daqui por diante ainda será pior. E o nosso ocidental entusiasmo e indignação serão inversamente proporcionais ao custo de vida. Não sei de daqui a quatro ou cinco meses já não estaremos dispostos a ceder a acordos injustos, a assobiar para o lado perante os crimes russos, a desejar que tudo isso acabe em nome do nosso conforto, da nossa intocável qualidade de vida, que já foi melhor.

Interessou-me o sudoeste de França pela sua riquíssima história medieval, terra onde pululam pequenas cidades fortificadas, castelos e mosteiros, aldeias intactas, catedrais fascinantes.

O acontecimento mais marcante da história daquelas terras está relacionado com a famosa Cruzada Albigense, ou Cruzada contra os Cátaros. Essa região de França, conhecida como terra do Languedoc, devido ao dialeto diferente do francês tradicional, era notavelmente rica. Com capital não oficial em Toulouse, o Languedoc era formado por pequenos ducados e condados, independentes mas aliados e amigos do reino de Aragão.

Ora, quando uma terra é rica não tem de passar o tempo a lutar contra a fome: quando o estômago está cheio, a cabeça começa a pensar noutras coisas. E, de alguma forma, pensar é desobedecer… surgiram então alguns teólogos que se punham o problema: se Deus é bom, como é que permite tanto mal? A solução foi elevar o Demónio à categoria de quase deus, havendo assim dois princípios divinos: o Deus bom e o deus mau. Por isso existia bem e mal no mundo. É o que chamamos “maniqueísmo”. Os seus seguidores eram extremamente rigorosos: a salvação só vinha pela fuga ao mundo, pelo sacrifício de todas as paixões. Eram os puros, os cátaros. O termo “catarse” significa purificação. Um dos emblemas dos cátaros era a luta contra a opulência e as riquezas da Igreja, que consideravam obra do mal.

O papa Inocêncio III alarmou-se. E declarou que a quarta Cruzada, em vez de ser na Terra Santa, seria no sul de França. Para isso convocou Filipe II, rei de França que não dominava o sul, a avançar contra o Languedoc, declarando que todas as cidades conquistadas passariam a pertencer a Paris. Foi o que o rei quis ouvir. Tornou-se claro, então, que a cruzada não seria apenas religiosa mas sobretudo política: não é que houvessem muitos cátaros para converter ou dizimar, mas havia muitas terras e riquezas para a coroa de França. Estávamos em 1209.

A guerra foi brutal, como todas as guerras. E injusta como todas. Carcassone, com as maiores muralhas medievais da Europa, foi tomada. Albi, de onde vem o termo “albigense”, sitiada e vencida, tendo-se construído, em louvor da vitória contra os cátaros, uma magnífica catedral em gótico mediterrânico, o maior edifício do mundo em tijolo.

A tomada de Béziers foi particularmente dramática. Depois de um cerco de meses, Béziers rendeu-se e abriu as portas ao exército do norte. Quem tinha a última palavra era o legado do Papa. Béziers tinha cerca de 10 mil habitantes. O legado ordenou que matassem todos os habitantes, sem poupar ninguém. Muitos não concordaram, por haver demasiados inocentes mortos. Mas as palavras do legado do Papa foram claras: “quem decide quem é inocente ou culpado é Deus. A nós, compete-nos mandá-los ir ter com Ele.” A cidade, ao que se sabe, teria 700 hereges.

A brutalidade do massacre de Béziers levou à rendição de várias cidades naquela região e o catarismo, como seita, definhou até à insignificância. Com a queda do Condado de Toulouse, a França estendeu-se até ao Mediterrâneo. A riqueza do sul de França desmantelou-se, agravada com a Peste Negra que, cem anos depois, dizimaria o sul de França de uma forma assustadora.

Na memória dos povos do Languedoc predominam canções e histórias contra Roma e contra Paris. Têm orgulho em chamar-se “Pays Cathare” (país cátaro) e um dos símbolos dessa região é a cruz de doze pontas, a cruz dos cátaros. São muito poucos os que se afirmam católicos.

Os Evangelhos foram escritos mais de mil anos antes de tudo isso. E nós ainda não aprendemos que a violência torna o violento mais herege do que a vítima. Foi sempre assim.

 

Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

Scroll to Top