Por José Júlio Rocha
Às quatro horas da manhã do dia 21 de fevereiro caía o primeiro obus. Depois de quase uma hora de bombardeamentos contínuos, a infantaria alemã avançou, brutal, sobre as forças inimigas. Tinha, assim, início a Batalha de Verdun, a mais tristemente famosa peleja da Primeira Guerra Mundial. Verdun é um símbolo e devia ter sido o aviso definitivo para que mais guerras não houvessem. Mas onde e quando os homens se dispuseram a aprender alguma coisa com a guerra, a não ser aperfeiçoar a própria guerra?
Alemães e franceses contenderam-se durante 300 dias, sem tréguas, à volta do rio Mosa e da cidade de Verdun, num campo de batalha onde, durante esses dez meses, caíram mais de 40 milhões de bombas, três por metro quadrado. Ainda hoje, mais de cem anos depois, há uma zona vermelha, onde nada se pode construir, devido à contaminação dos terrenos com os químicos das bombas ou à existência de inúmeros artefactos por explodir.
Os alemães entraram a matar. Cercaram Verdun de tal forma que só deixaram um caminho aberto para abastecimento das tropas francesas, enquanto eles tinham catorze vias à sua retaguarda. Seria uma batalha rápida e os alemães ficariam mais perto de Paris. Só que os franceses decidiram vender cara a pele e, todos os dias, mais de mil veículos percorriam aquela estrada salvadora (a que chamaram “Via Sacra”) que suportaria as tropas francesas.
Com avanços e recuos, de trás para a frente e da frente para trás, a carnificina prolongou-se sem avanços importantes de nenhuma parte, mas com este particular interessante: morreram, em média, durante esses dez meses, 1000 soldados por dia, o que dá um total de 3000 mil mortos nessa batalha. “Morreram”, aqui, é um eufemismo: foram pulverizados. Não houve palmo de terra poupado, a devastação daquela guerra total fez ainda mais de um milhão de feridos e traumatizados. Mais de cinco mil bombas por hora durante esses dez meses dão-nos uma ideia – ou não nos dão ideia nenhuma – do que foi uma batalha sem tréguas nem valores, onde a terra e o sangue e as pernas e os dedos e as tripas e as cabeças e tudo se juntou numa mistura em que o húmus daquela terra foram seres humanos.
Entre os incontáveis monumentos aos 300 dias de Verdun, nenhum é tão impressionante quanto o Ossário de Douaumont, erguido em 1927 diante do forte mais poderoso da zona de batalha. Na torre principal dessa sepultura de massa jazem os restos mortais de cerca de 130 mil soldados franceses e alemães, todos desconhecidos. Até hoje ainda são depositados lá ossos da época, achados por acaso em jardins, campos e bosques da região.
Eis a pergunta: que razão levou a essa batalha? Nenhuma, a não ser as tropas alemãs avançarem mais umas poucas de milhas pela França adentro, e matar o maior número de inimigos possível. Quais os resultados bélicos? Nenhuns, a não ser os alemães não avançarem. No meio dessas nulidades militares restam os mortos, os feridos e os traumatizados que enegreceram de sofrimento os dois países.
O certo é que, depois de quinze dias de batalha, ambos os lados perceberam que nem um nem outro avançavam. Então porque é que não pararam? Não sei. E esta é a parte incrivelmente mais difícil de aceitar. Se, ao fim de quinze dias, ambas as partes adivinharam o absurdo daquela batalha, ainda com poucas vítimas, porque é que não pararam? Porque é que não se sentaram a uma mesa? Porque é que, simplesmente, não desistiram de se matar? Porque é que não tentaram uma trégua, um cessar-fogo e continuaram naquele rolo compressor e esmagador de vidas ao absurdo mais desumano imaginável?
É essa a mesma pergunta que me faço e vos faço neste nosso tempo, acometido por duas guerras que nos entram pela casa adentro como bombas. Porque é que os chefes das nações, os senhores da guerra, os políticos e militares não encontram outro caminho senão o da destruição do inimigo? É que o ódio, quando se entranha num ser humano, num sistema de pessoas, num povo, fura até ao fundo, vai até onde o diabo não consegue. A capacidade do homem para o mal é a única “qualidade” que ele consegue desenvolver até ao infinito e tudo isso foi-se aperfeiçoando com guerras que vêm desde que o homem é homem. As praças das nossas cidades estão repletas de heróis de guerra, sobretudo dos vencedores que mataram mais. Generais condecorados, heróis solitários, estrategas da morte. Um dos momentos mais altos da História de Portugal? A batalha de Aljubarrota; um dos momentos mais baixos? A batalha de Alcácer Quibir. Fomos ensinados, desde a origem, a admirar os feitos bélicos dos nossos, empapámo-nos, demasiadas vezes, de nacionalismos que exaltam o poderio militar e a capacidade bélica da nossa nação, mártir ou heróica, e tudo isso tem a ver com a guerra. Apesar de toda a evolução que os séculos XIX, XX e XXI trouxeram à espécie humana, nós ainda, mesmo o Ocidente humanista, vivemos uma cultura de guerra. Ou seja, o ódio é o monstro que alimentamos com mais parcimónia.
Alguém escreveu um dia, em plena II Guerra Mundial: “Acredito hoje que minha conduta está de acordo com a vontade do Criador Todo-Poderoso.”
Convido a expulsarem do poder todos aqueles que abençoam a guerra… a tornam… santa. A frase acima foi tirada de um discurso de Adolf Hitler.
*Este artigo foi publicado esta sexta-feira no Diário Insular na rubrica Rua do Palácio