Pelo Pe. Teodoro Medeiros
Iniciamos 2020 com uma pequena lista de vários filmes que por uma razão ou por outra merecem atenção. Os géneros e as origens são muito variados, como o é o próprio cinema. E nem sequer todos obedecem ao critério máximo, o de retratarem as implicações menos óbvias da condição humana.
Dois Papas (2019) de Fernando Meirelles. Os dois atores (Anthony Hopkins e Jonathan Price) incarnam eficazmente os seus famosos personagens históricos. No caso de Price (Bergoglio) a semelhança é tão impressionante que temos de nos beliscar. A estória é inventada, a conversa nunca aconteceu, mas as frases e a própria personalidade dos dois interlocutores encaixam no que é conhecido dos personagens históricos.
O filme usa Bergoglio para os alívios humorísticos, exagerando as cores e resvalando quase na caricatura às vezes. Trata-se de um filme leve mas não tão despretensioso quanto possa parecer: por entre os momentos de riso e de descrição da vida passada de Bergoglio, há espaço para uma subtil acusação ao então Ratzinger. A premissa do filme consegue suster o interesse do espetador: há de facto momentos insólitos o suficiente para rir, abrir a boca de espanto e dizer, com o guarda do Vaticano: “Não acredito!”
J’accuse – O Oficial e o Espião (2019) de Roman Polanski. Aqui revemos o filme e não o passado de Polanski, o rei David do cinema. E trata-se de uma obra enxuta, de reconstituição atenta do período histórico em causa e das mentalidades em França de fim do século XIX, início de XX. Um oficial judeu do exército francês foi sumariamente condenado por espionagem e desterrado. A sua inocência veio a ser provada mais tarde.
A contenção da narração empresta uma autoridade suplementar ao filme: nada se exagera, tudo se revela tal qual se passou. Daí que seja assustador que o argumento da autoridade usado em tribunal pelo exército, seja basicamente declinado nos mesmos cânones nos nossos ecrãs de televisão. Falamos da audição de testemunhas no processo de destituição de Trump: a superioridade moral dos defensores esquece, mas escarnece ainda assim a mulher de César.
Bacurau (2019) de Juliano Dornelles, Kleber Mendonça Filho. Um enredo muito simples e clássico: pequena povoação une-se para combater um inimigo exterior, requerendo a ajuda de especialistas. Faz-se pelo menos desde o famoso “Os sete Samurais” de Kurosawa, em 1954: o que há então de novo a assinalar? Este “western brasileiro” está muito bem filmado e realizado: há uma naturalidade em todo o processo que indicia declaração de princípios.
Mas trata-se de um manifesto: o Brasil encontra-se, na visão dos autores, afrontado pela corrupção política e é urgente a revolta. Nem sempre se trata de metáfora, o destino do candidato à reeleição é aqui semelhante ao do bode expiatório: abandonado no deserto. Mas, quando se veem os abutres (perdão, os urubus) sobrevoando os cadáveres, é difícil não ler aí uma crítica velada.
Western Stars (2019) de Bruce Springsteen, Thom Zimny. Este musical vê o célebre cantor apresentar num contexto íntimo (um celeiro no seu quintal), junto de poucos convidados, o seu último disco. Os personagens olham os erros do passado: a música em si concilia o acústico com o orquestral e o elétrico, constituindo assim uma novidade relativa na carreira do “Boss”.
O filme apresenta nas versões de estúdio mais nuances vocais). O que vale mesmo são as reflexões entre canções, onde a experiência de vida revela dotes de místico. Como quando diz que “o amor é o único milagre do qual Deus nos dá provas todos os dias… e nós tentamos não ver.”
Free Solo (2018) de Jimmy Chin, Elizabeth Chai Vasarhelyi. Trata-se de um documentário sobre um desporto muito perigoso: o escalamento de montanhas sem recurso a cordas de segurança. O obstáculo é a montanha El Capitan, no Parque Nacional de Yosemite, Califórnia, que mede 2307 metros de altura. O título esclarece que o protagonista Alex Honnold foi o primeiro a fazê-lo solitariamente.
Obviamente, sabemos que se o filme foi feito, é porque o objetivo foi alcançado: não há grandes surpresa no desfecho. Mesmo assim, trata-se de uma empresa que toca os conceitos de realização pessoal e ambição, mas também os de loucura e dos custos da fama. Afinal, basta escorregar 1 centímetro para pertencer à lista de mortos deste desporto.
Knives Out: Todos São Suspeitos (2019) de Rian Johnson. Para quem gosta do género policial, Knives Out é um interessante exercício de género: antes de mais, porque há um detetive privado e é ele que revela tudo num diálogo final. Mas também porque o reboliço está todo à volta de um homicídio cometido. A ideia de que todos tinham um motivo para o crime parece ter sido roubada de “Um Crime no Expresso do Oriente” de Agatha Christie.
A originalidade está no tom ligeiro, cómico, como que a dizer, isto é tudo a brincar. E brinca sobretudo com a exposição eminente dos segredos de cada personagem. Os familiares do morto são todos execráveis: a exclusão de todos do testamento é apenas a primeira das recompensas emocionais ao espetador. Muitas mais virão. Recomendado para desvanecer a rotina dos dias.
Parasitas (2019) de Bong Joon Ho. O realizador sul coreano especializou-se de alguma forma em crítica social (veja-se “Okja” de 2017 ou “Expresso do Amanhã” de 2013). Um rapaz de família pobre consegue emprego como explicador da filha de uma família rica. Engenhosamente, conseguirá ir despedindo um a um todos os outros funcionários e… substitui-los, um a um, com os outros membros da sua família.
O estratagema exporá as fragilidades do tecido social e da própria tecnologia: é tudo muito útil, mas só enquanto é usado para o bem. Os momentos de suspense não deixam aqui ninguém aborrecer-se e as revelações aprofundam e unificam o pontapé de saída. Como Kim Ki-duk, há uma certa tendência para o grotesco e isso pode dessensibilizar alguns espetadores. Seria pena, porque há aqui muito respiro de cinema.
O Grande Mestre (2013) de Wong Kar-wai. O que faz este filme nesta lista? Uma biografia do mestre chinês de artes marciais Ip Man? Sim, apesar dos esperáveis exageros e liberdades com as leis da física, há muito a apreciar. Tratando-se do realizador em questão, não surpreende o rigor da montagem (demorou 1 ano) e da seleção dos ângulos que remonta já à filmagem. Wong Kar-wai constrói os planos e as perspetivas como ninguém: é um espanto.
A estória envolve-se nos tradicionais mitos chineses: sofrimento, rivalidade, orgulho, resiliência, humanidade. O conceito de honra e compromisso constitui de resto o aspeto quase religioso do filme: recorda-nos que escolher é de certa forma morrer para o mundo. Uma lição de moral a reter de um filme não moralista e de cinematografia sublime.
Bons filmes!