Por Carmo Rodeia
Já várias vezes expressei neste espaço de opinião o meu entusiasmo com o pontificado do Papa Francisco. A sua eleição, depois da revolução protagonizada pela resignação de Bento XVI, transformou radicalmente uma Igreja a precisar de ser agitada e de mudar. E, Francisco tem tido a coragem de colocar a Igreja em movimento, de uma forma mais transparente e autêntica.
Como disse, ainda no sábado numa entrevista ao Público, o arcebispo D. José Tolentino Mendonça, o Papa Francisco é o ponto de referência de uma Igreja que “assume a necessidade de purificar-se de desvios, erros e de crimes passados e que transporta para o presente uma exigência de coerência evangélica. E ele é o primeiro a dar o exemplo. Não é por acaso que não só dentro da Igreja, mas tantos não-crentes manifestam o seu respeito e admiração por Bergoglio. Os seus atos falam e são uma rara âncora de esperança para o nosso tempo”. Neste parágrafo está resumida de uma forma clara a essência deste pontificado.
Todos nos lembramos das primeiras fotografias que vimos de Francisco, ainda bispo na Argentina e quando viajava de metro. Depois vimo-lo, já após ser eleito Papa, a ir pagar a residência onde tinha ficado quando foi a Roma para o conclave, ou quando disse que não podia mudar de sapatos porque tem uma perna maior do que a outra e precisa dos seus sapatos ortopédicos…
O facto de ser Papa não mudou a sua maneira de ser, a sua humanidade; é um homem coerente que pode errar e deve ser avaliado pelo que quer mudar na Igreja e no Mundo. Mas é um homem. E, da coerência dos seus gestos e dos seus atos resulta a sua credibilidade.
Hoje, precisamos de pastores que não sejam príncipes, que estejam ao lado das pessoas, que preguem com palavras simples e normais que todos possamos entender, mas que ao mesmo tempo sejam profundos, que nos façam pensar e rezar, e até que nos façam sofrer.
Francisco é jesuíta e os jesuítas têm sido diretores espirituais fantásticos ao longo da história da igreja, sempre preocupados com a salvação pessoal de cada um. Aliás Francisco tem dito várias vezes para não se fazerem programas pastorais em massa; o principal desafio é atender a cada caso concreto. Foi este o repto de muitos dos seus documentos. Há orientações genéricas que depois têm de ser adaptadas a cada realidade pastoral concreta. Foi assim, por exemplo, com a Amoris Laetia, que muitos esperavam que fosse quase um programa de `governo´ para as dioceses , para a família com regras, objetivos e metas.
Não foi assim. Não podia ser assim. O essencial da atitude pastoral está lá e é o que basta: quando falamos com alguém que se divorciou ou alguém que é homossexual, não devemos ter nenhum preconceito. E quando alguém que é recasado e se abeira da igreja não pode ser rejeitado, para exemplificar apenas com os temas que são recorrentemente aflorados. O capítulo sobre a família é um hino ao amor conjugal. Só não bebe dali doutrina ou sugestões para agir quem não estiver para aí virado.
Ele repete constantemente que a Igreja não é uma alfândega, não coloca barreiras à entrada. Para ele, a Igreja é um barco que traz a salvação a quem se está a afogar no mar e tem uma boia para atirar sempre, independentemente das ondas e independentemente de quem é o naufrago.
Quando lemos a Evangelii Gaudium, a Amoris Laetitia, ou qualquer discurso do papa Francisco, o que descobrimos é um pastor muito exigente, que diz que não quer mudar a doutrina, mas quer sim uma conversão pastoral da Igreja.
Para muitos isto parece ser difícil de compreender, ou melhor de assimilar. Por isso, fazem em surdina, e por vezes de forma sibilina, o ataque a este Papa e ao seu Pontificado apelidando-o de vago, de pouco profundo ou de relativista, já que não têm a coragem de dizer em publico o que lhe chamam em privado. São pessoas que querem uma igreja distante, baseada numa moral legalista, em que o poder não é uma forma de serviço.
A máscara caíu recentemente com a carta do arcebispo Viganò, ex núncio em Washington. A temática de que fala é muito importante, não pode ser escamoteada e chegou o momento da igreja a enfrentar colocando em prática os documentos que já existem para lidar com este tipo de situações e entregando à justiça o que tem de ser julgado. É a maior hecatombe e uma das maiores vergonhas espirituais, morais e pastorais da igreja, como disse o cardeal D. António Marto.
Francisco tem olhado para a temática de forma assertiva: pediu desculpa, num tom nunca antes usado por qualquer pontífice, criou uma comissão para acompanhar o dossiê, destituiu dois cardeais e colocou um ex núncio atrás das grades. Falta mais qualquer coisa, com certeza. Se calhar avivar as memórias dos mais distraídos que não têm posto em prática os documentos da igreja que são claros em matérias como esta e iniciar uma discussão em terno de assuntos como a sexualidade, o celibato dos padres e a formação nos seminários, já iniciada. Restam poucas dúvidas de que o fará, com a mesma transparência e congruência a que nos habituou.
A carta que escreveu ao “Povo de Deus” é clara e sinal de que o Papa sabe muito bem governar a Igreja e decidir. Com todos e não apenas com alguns que querem o poder só pelo poder. É isso que alguns não perdoam a Francisco. Paciência…