Do “Contágio” da desinformação ao “Ensaio sobre a Cegueira” economicista

Por Carmo Rodeia

No argumento do filme “Contágio”, dirigido por Steven Soderbergh, uma executiva americana é infectada por um vírus misterioso na China. Após ter contato com outras pessoas à sua volta, acaba por espalhar a doença pelo mundo inteiro.

A covid-19, que todos os dias somos forçados a viver, mesmo assintomáticos e negativos à sua testagem, não podia ter um paralelismo mais evidente e oportuno do que este. No filme como na realidade, a China terá sido o país onde tudo terá começado e os Estados Unidos, graças à fanfarronice de um presidente medíocre, é hoje o país mais afetado do mundo em termos de mortes e de população contagiada, que já ascende aos dois milhões de pessoas. E, embora, não haja registo de que o coronavírus possa ter prejudicado a visão, como acontecia no vírus do Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meireles, numa adaptação do livro de José Saramago, nem tão pouco o abandono dos casos positivos ao isolamento num manicómio algures esquecido, não dará para negar que o vírus vem causando um colapso em todo mundo, sobretudo, na economia.

Se somarmos à ficção a desinformação que corre por estes dias nas redes sociais teremos o caldo perfeito.

O Expresso deste fim de semana exibia uma reportagem sobre a desinformação (ou melhor as fake news tóxicas, como todas as fake news) a propósito do coronavírus, com teses mirabolantes que se não fossem danosas dariam certamente para alimentar vários documentários daqueles que parecem jornalísticos, e que crescem, à velocidade da luz, nas plataformas de conteúdos pagos por estes dias. Enumero apenas alguns dos títulos mais sugestivos:  “O coronavírus foi introduzido de propósito pelo poder corrupto”, “Bill Gates está por detrás disto tudo para vender vacinas” e “o mundo é controlado por um elite de esquerda que esconde uma rede de pedofilia”. Eis apenas parte das teorias da conspiração que circulam por exemplo na Alemanha, onde já nasceu um movimento de protesto contra as medidas de prevenção sanitária. A extrema-direita vai-se alimentando desta desinformação e somando poder.

Um estudo das nações Unidas, feito em parceria com o International Center for Journalists, assinado por Julie Posetti, diretora global de pesquisa do ICFJ e pesquisadora sénior do Centro de Liberdade dos Media da Universidade de Sheffield (CFOM) e Universidade de Oxford, foram identificados temas diferentes da `desinfodemia´ desde conselhos prejudiciais à saúde até ferozes teorias de conspiração. A desinformação sobre a Covid-19 emprega, ainda, uma ampla variedade de configurações, desde memes até sites elaborados e campanhas orquestradas.

Um mapeamento feito pelo Instituto Reuters e pela Universidade de Oxford detalhou alguns dos principais tipos, fontes e reivindicações de desinformação sobre a pandemia. Quase 70% das informações divulgadas sobre a Covid-19 tinham como fonte principal influenciadores digitais, incluindo políticos, celebridades e figuras públicas e redes sociais.  Desse total, 20% das informações eram fake news. Os dados demonstram que 59% das postagens do Twitter foram classificadas como falsas, mas mesmo assim permanecem em alta. No YouTube, 27% permanecem ativos e no Facebook, 24% do conteúdo com classificação falsa continuam na timeline sem rótulos de aviso.

Enfim…

O que, infelizmente, não é fake news e que vai sobrar de tudo isto é que a “a crise vai doer nas almas e as feridas não vão ser iguais para todos” como dizia José Gameiro também no Expresso desta semana. O desemprego e a ausência de um mínimo de recursos financeiros são preditores  muito fortes do agravamento da nossa vida. Como sempre, temo que na crise os ricos fiquem mais ricos e os pobres mais pobres. É a economia, dirão alguns. E as pessoas?

A ficção é o que é. Mas a notícia também tem que ser o que é e não o que interessa ou dá jeito. Desde o início, a nossa narração está ameaçada:” na história, serpeja o mal”, recordava o Papa Francisco na última mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais.

“Frequentemente, nos «teares» da comunicação, em vez de narrações construtivas, que solidificam os laços sociais e o tecido cultural, produzem-se histórias devastadoras e provocatórias, que corroem e rompem os fios frágeis da convivência. Quando se misturam informações não verificadas, repetem discursos banais e falsamente persuasivos, percutem com proclamações de ódio, está-se, não a tecer a história humana, mas a despojar o homem da sua dignidade” afirma o Papa Francisco.

“Mas, enquanto as histórias utilizadas para proveito próprio ou ao serviço do poder têm vida curta, uma história boa é capaz de transpor os confins do espaço e do tempo: à distância de séculos, permanece atual, porque nutre a vida”. Já temos saudades destas histórias.

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