Pelo Padre José Júlio Rocha
Ralph Fiennes é um ator pouco mais que sobredotado, um génio indiscutível e dificilmente igualável na sétima arte. Um dos seus papéis mais bem conseguidos pode ser visto naquele que considero um dos melhores filmes de todos os tempos e, seguramente, a mais famosa e mais realista obra cinematográfica sobre o horror do holocausto nazi. Trata-se – já sabem – de “A Lista de Schindler”, do também raro Spielberg.
Nessa narrativa, Fiennes faz o papel do pérfido e execrável Amon Göth, oficial alemão responsável pelo campo de concentração de Plaszow, Cracóvia, famoso pela frieza das suas inúmeras atrocidades. De vez em quando, por exemplo, do seu confortável chalé em cima da colina, dava-lhe na cabeça e disparava sobre um prisioneiro qualquer, que estivesse parado no meio do campo, assim, só por capricho. Matava por prazer, por desprezo, por raiva, por arrogância, matava por não ser capaz de não matar. Os judeus eram ratazanas. Amon tinha uma empregada judia, que vivia na cave do chalé. Era bela e Amon sentia uma atração, uma paixoneta por ela. Um dia Oscar Schindler desce à cave para escolher uns vinhos e põe-se à conversa com Helen Hirsch, a empregada. Ela fala-lhe do medo constante do patrão, que lhe bate e, a qualquer momento, a pode matar como quem esmaga uma barata. Schindler diz-lhe que Amon nunca lhe fará isso, porque ela é importante para ele. Ele mata pessoas apenas porque elas não significam nada para ele, são meros objetos, nada mais. Mas, a ela, ele nunca a matará. E assim aconteceu.
Conto esta cena para ilustrar, de algum modo, a nossa relação com os outros. Parto do princípio inalienável de que cada pessoa é um mistério, um ser insondável, único e irrepetível. Se nem nos conhecemos a nós próprios, muito menos conhecemos o outro. O maior problema nas relações humanas é pretender que conhecemos o outro. Então o outro é o político, e todos os políticos são vendidos; é o banqueiro, e todos os banqueiros são corruptos; é o padre, e todos os padres são falsos; é o cigano e todos os ciganos são incorrigíveis; é o muçulmano, e todos os muçulmanos são terroristas; é o comunista, e todos os comunistas comem crianças. Muitas das nossas relações humanas estão transidas de classificações e preconceitos. E tudo isso é profundamente destrutivo.
A tragédia grega pode-nos ensinar algo sobre isto. Nela, o “pathos” é o destino imposto pelos deuses aos homens. “Pathos” significa imposição, destino, sofrimento, tudo aquilo que fazem de nós e que nada podemos fazer. Daí vem patologia, paixão, Senhor dos Passos, passividade. Portanto, na tragédia grega há um destino imposto que os homens carregam consigo. Mas, de vez em quando, o homem revolta-se contra esse destino. Reage, faz alguma coisa, liberta-se das amarras do destino e transforma-se em herói, normalmente aniquilado ou castigado pelos deuses. Essa revolta, essa libertação é o “ethos”, aquilo que me não foi imposto mas brotou da minha vontade, liberdade, coragem. De “ethos” vem a ética, a moral.
Na mesma linha, todos nós temos nome próprio e nome de família. O nome de família simboliza o lugar de onde viemos, aqueles a quem pertencemos, os nossos genes, o que nos foi imposto sem que tivéssemos liberdade de escolha, o nosso “pathos”. Pelo contrário, o nome próprio indica que somos únicos e irrepetíveis, indica aquilo que nos torna diferentes dos outros, a nossa intimidade, liberdade, a nossa essência, o nosso “ethos”. Todos nós somos “pathos” e “ethos” ao mesmo tempo.
Uma das grandes mensagens de Jesus que o Cristianismo deve – ou devia – seguir com uma obediência dogmática, é exatamente a forma de olhar o outro. Os judeus do Seu tempo consideravam como “próximo” apenas aquele que pertencia à sua família, ao clã, à tribo, à religião. Ao seu grupo. No capítulo 10 do Evangelho de São Lucas encontramos um doutor da Lei em diálogo com Jesus a perguntar-Lhe quem é o “próximo”. Jesus conta-lhe a parábola de um homem que foi roubado, espancado e deixado quase morto à beira da estrada. Por ali transitam um sacerdote e um levita – os próximos por excelência – que passam ao lado. Mas um samaritano (equivalente, nos nossos dias em Israel, a um palestiniano) teve compaixão e salvou o homem. “Vai tu e faz o mesmo”, aconselha Jesus ao doutor da Lei e a nós próprios.
Jesus ensina-nos um novo olhar sobre o outro, um olhar cristalino e sábio, que não vê apenas a aparência. O outro não é aquilo a que pertence: o outro é aquele que é, a sua dignidade e liberdade. O outro é o mistério que o torna humano como eu. Todo o ser humano é meu próximo, porque o conceito de “próximo”, para Jesus, ultrapassou as fronteiras da pertença ou do preconceito, da raça ou da religião, da política ou da geografia, para se tornar naquilo que verdadeiramente é: uma pessoa única. Esta é a verdadeira transformação que a humanidade precisava. E que a Igreja continua a precisar.
Aquela fotografia emblemática de um negro subsariano, esgotado depois de ter atravessado o mar de Ceuta, e que abraça e se deixa abraçar, desamparado, por uma enfermeira espanhola, branca como as areias daquela praia, devia virar póster em todas as escolas, “outdoor” em todas as cidades. Aquele abraço vale mais do que mil manifestações contra o racismo. É uma sinfonia tocada em louvor de tudo aquilo a que chamamos compaixão ou misericórdia: um abraço destrói toneladas de muros de betão reforçado.
Amon Göth é parte de uma história que não começou nos campos de extermínio nem nas câmaras de gás. Começou com os líderes a dividirem os humanos entre “nós” e “eles”.