O diálogo inter-religioso é o novo nome da paz se o perdão for o substantivo

Por Carmo Rodeia

Francisco tem sido um Papa surpreendente. Desde a primeira hora. Lembro-me de quando foi o conclave da sua eleição. Estava exatamente no complexo desportivo Sidónio Pais, no Lajedo, em Ponta Delgada, dentro do carro, à espera do fim do treino do meu filho mais novo. E, de repente, a emissão da TSF é interrompida para dar conta de que há um novo Papa, vindo do outro lado do mundo, que se vai chamar Francisco, como Francisco Xavier vaticinaram logo os comentadores, o missionário Jesuíta da Companhia de Jesus, à que pertencia Francisco. Minutos depois percebe-se que afinal a escolha era outra e mais do que um tributo era um modo de ser Igreja.

Imagino que muitos devem ter-se desiludido; ainda hoje haverá muitos desiludidos (mais ruidosos do que em efetiva quantidade!); neste fim de semana hão de ter-se proposto mesmo a rasgar as vestes, com tudo o que o Papa disse e fez no Iraque.

Voltemos ao santo de Assis. Francisco era rico mas fez votos de pobreza. Quando, por volta de 1206, ouviu de Deus essa exortação para restaurar a Sua casa, imaginando tratar-se de reconstruir uma capela, volta para Assis; vende parte dos tecidos do pai, proeminente comerciante desta cidade italiana, e entrega-se ao serviço de Deus e dos miseráveis. Dois anos mais tarde compreende o verdadeiro sentido da mensagem de Deus: restaurar a Igreja como instituição, uma vez que ela se desviava dos ensinamentos de Cristo e vivia cercada de opulência. Faz votos de pobreza e começa a pregar e a viver voltado apenas para o espírito, sempre com o lema de que somos todos irmãos: homem e natureza. E que a humanidade é uma narração de Deus e nós, como parte integrante dessa humanidade e desse mandato de sermos como Ele, temos de nos entender.

Regresso ao Papa Francisco e à sua viagem ao Iraque, concretamente ao encontro com o líder xiita do Iraque, o aiatola Ali Al-Sistani. Um encontro improvável entre dois homens, que nas suas diferenças, amam a Deus e conformam a sua ação à Sua palavra, amando o mais próximo.

“Se Deus é o Deus da vida – e é-O –, não nos é lícito matar os irmãos em seu nome. Se Deus é o Deus da paz – e é-O –, não nos é lícito fazer a guerra em seu nome. Se Deus é o Deus do amor – e é-O –, não nos é lícito odiar os irmãos”, disse Francisco.

Na terceira cidade sagrada para os muçulmanos xiitas depois de Meca e Medina, e que abriga o túmulo de Ali, genro e primo de Maomé, este encontro tem de significar muito mais do que uma cortesia. Este é um verdadeiro gesto de paz que tem de nos desinstalar. Não importa quem dá o primeiro passo. Ele tem é que ser dado. E Francisco deu-o.

Deste encontro não pode senão ecoar um grito ainda mais alto para que todos os homens de boa vontade reflitam sobre a dor de toda a humanidade, de todo o ser humano, enquanto ser digno de respeito e de amor.

Lembro-me de outro santo , John Henry Newman: “Quem quer que tu sejas, Deus olha-te de um modo único e particular; Ele chama-te pelo nome; Ele vê-te e compreende porque é Ele que te criou. Ele conhece tudo aquilo que existe em ti, cada uma das tuas emoções e dos teus pensamentos, a tua força e a tua fraqueza”.

Deus fez-se homem por amor aos homens. Morreu na cruz por amor a toda a humanidade. Não procura nem nunca procurou o mais perfeito dos homens para habitar nele, assumindo a natureza humana, tal qual como ela é. Como nos lembra o teólogo Dietrich Bonhoeffer “Jesus Cristo não é uma humanidade excelsa transfigurada, mas o “sim” de Deus ao homem real; não o “sim” neutro que dá um juiz, mas o “sim” misericordioso do companheiro de sofrimento. Neste “sim” está contida a vida inteira e a esperança do mundo”.

Naquele encontro, de mãos dadas, Francisco e Al-Sistani mostraram ao mundo que só este amor nos pode salvar. Se nos perdoarmos uns aos outros e entendermos que “estamos todos no mesmo barco”, não só durante a pandemia mas sobretudo na passagem por este mundo.

“Há momentos em que a fé pode vacilar, quando parece que Deus não vê nem intervém”, mas “mesmo no meio das devastações do terrorismo e da guerra podemos, com os olhos da fé, ver o triunfo da vida sobre a morte”, lembrou Francisco em Mossul. Mas para isso, é preciso “confiar em Deus, que nunca decepciona”. Porque é Amor!

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