O Vigário Episcopal para o Clero diz que documento- Antiqua et Nova-, assinado por dois dicastérios mostra como a Igreja quer debater um tema atual
A Nota “Antiqua et nova” sobre a relação entre Inteligência Artificial e inteligência humana publicada em conjunto pelos Dicastérios para a Doutrina da Fé e para a Cultura e Educação “é mais uma forma da Igreja mostrar que está a par dos problemas do mundo e as questões éticas levantadas pela Inteligência Artificial ainda estão por apurar na sua real dimensão” afirma em entrevista ao programa de rádio Igreja Açores o Vigário Episcopal para o Clero.
“Nós habituámo-nos a uma série de problemas sérios que as redes sociais trazem e o número de mentiras que são validadas pelas redes sociais é muito preocupante. Ora a Inteligência Artificial, que estas redes já utilizam, através do algoritmo levantará ainda problemas maiores” refere o padre José Júlio Rocha.
“Este novo documento da Igreja é, por isso, mais um alerta de que devemos estar atentos e vigilantes e todos temos de utilizar esta ferramenta que tem um enorme potencial no sentido do bem comum”, refere o sacerdote que é doutor em Teologia Moral.
“A Inteligência Artificial vai -aliás já está- a trazer coisas boas para a saúde, a educação, a comunicação mas traz também muitas coisas negativas e uma delas é o definhar da autonomia do ser humano” sublinha lembrando que “quando a Igreja pede responsabilidade- como acontece neste documento- sabe exatamente o que está a fazer: o uso da IA pela política ou por entidades com menos escrúpulos pode ser muito gravoso e perigoso para a humanidade”.
Para o sacerdote, “há sinais claros” do mau uso que pode ser feito da Inteligência Articial sem que possamos dar por isso.
“Quantas imagens, quantos discursos já foram feitos sem que nós saibamos se foram reais ou produzidos pela Inteligência Artificial?” interpela.
“A Igreja tem de encontrar caminhos de evangelização que combatam esta ideia de que as `fake news´ ou a mentira valem outro tanto como a verdade” refere, ainda.
O novo documento do Vaticano Novo, assinado pelos cardeais D. Víctor Fernández e D. José Tolentino Mendonça aborda o impacto da IA em áreas como educação, trabalho, saúde, guerra e espiritualidade . O texto alerta para os riscos destes sistemas e da concentração de recursos num conjunto de empresas “poderosas”.
“O facto de a maior parte do poder sobre as principais aplicações de IA estar atualmente concentrado nas mãos de algumas empresas poderosas suscita preocupações éticas significativas”, refere a nota ‘Antiqua et nova’ (antiga e nova), sobre a relação entre a IA e inteligência humana.
A reflexão adverte que nenhum indivíduo “consegue ter uma supervisão completa dos vastos e complexos conjuntos de dados utilizados para a computação”.
“Esta falta de responsabilidade bem definida gera o risco de a IA poder ser manipulada para benefício pessoal ou empresarial, ou para orientar a opinião pública para os interesses de um sector”, pode ler-se no documento, enviado aos jornalistas.
Ao longo de 35 páginas, preenchidas por duas centenas de citações (214 notas), o novo texto aborda as questões antropológicas e éticas levantadas pela IA, assumindo “preocupações sobre a sua possível influência na crescente crise da verdade no debate público”.
Os colaboradores do Papa sublinham que a IA deve ser utilizada para “promover a dignidade humana e o bem comum, e não para substituir ou degradar a pessoa humana”.
O texto assume preocupações perante “problemas substanciais de responsabilidade ética e de segurança, com repercussões mais vastas na sociedade em geral”.
A relação entre IA e o mundo do trabalho é vista como “fonte de enormes oportunidades, mas também de riscos profundos”.
“Embora a IA prometa aumentar a produtividade ao assumir tarefas comuns, os trabalhadores são muitas vezes forçados a adaptar-se à velocidade e às exigências das máquinas, em vez de as máquinas serem concebidas para ajudar aqueles que trabalham”, indica o Vaticano.
A nota conjunta rejeita a ideia de uma “humanidade escravizada pela eficiência”, alertando para as “implicações antropológicas e éticas” do desenvolvimento tecnológico.
“A humanidade arrisca-se a criar um substituto de Deus. Em última análise, não é a IA que é deificada e adorada, mas o ser humano, que se torna, assim, escravo do seu próprio trabalho”.
O documento aborda questões específicas, como o impacto da IA na sociedade, na educação, no trabalho, na saúde, na guerra e na espiritualidade.
“Embora a IA processe e simule certas expressões de inteligência, permanece fundamentalmente confinada a um domínio lógico-matemático, o que lhe impõe certas limitações inerentes”, indica o Vaticano.
A reflexão sublinha a centralidade da “dignidade humana”, considerando importante que a” pessoa que toma decisões com base na IA seja responsabilizada por elas e que seja possível justificar a utilização IA em todas as fases do processo”.
Pedindo algoritmos “fiáveis”, os responsáveis da Santa Sé apontam o “elevado grau de subalternidade em relação à tecnologia que caracteriza a sociedade contemporânea”.
A nota alerta para a “antropomorfização da IA” e defende que nenhuma aplicação é “capaz de sentir verdadeiramente empatia”.
Num mundo cada vez mais individualista, há quem se tenha virado para a IA em busca de relações humanas profundas, de simples companheirismo ou mesmo de laços emocionais”.
Relativamente aos cuidados de saúde, o Vaticano saúda os avanços na área do diagnóstico e tratamento, mas rejeita que os doentes passem a “interagir com uma máquina em vez de um ser humano”.
O texto reflete ainda sobre o campo da educação, falando numa “relação indispensável entre professor e aluno”, particularmente perante uma “cultura largamente digitalizada”.
“A utilização extensiva da IA na educação poderia levar a uma maior dependência dos estudantes em relação à tecnologia”, indicam os responsáveis da Cúria Romana.
É necessário que os utilizadores todas as idades, mas sobretudo os jovens, desenvolvam uma capacidade de discernimento na utilização dos dados e conteúdos recolhidos na Internet ou produzidos por sistemas de inteligência artificial”.
O Vaticano dedica uma reflexão particular para os fenómenos de desinformação e o chamado “deepfake”, recordando que “os atuais programas de IA podem fornecer informações distorcidas ou fabricadas”.
“Este tipo de engano generalizado não é um problema menor: atinge coração da humanidade, demolindo a confiança fundamental sobre a qual as sociedades são construídas”, lamenta a nota.
O documento adverte também contra mecanismos de controlo social e violação da privacidade, advogando maior respeito pelos dados pessoais.
“Não há justificação para a sua utilização para fins de controlo para exploração, para restringir a liberdade das pessoas ou para beneficiar uns poucos à custa de muitos”, pode ler-se.
O texto identifica potenciais “avanços” no combate às alterações climáticas, com a ajuda da IA, mas recorda o “pesado impacto que estas tecnologias têm no ambiente”.
Citando o discurso do Papa na sessão do G7 sobre inteligência artificial em Borgo Egnazia (Itália), a 14 de junho de 2024, a nota observa que os sistemas de armas autónomas letais, capazes de identificar e atingir alvos sem intervenção humana direta, são “um sério motivo de preocupação ética”.
“Como a distância entre as máquinas capazes de matar com precisão e de forma autónoma e outras capazes de destruição maciça é curta, alguns investigadores que trabalham no domínio da IA manifestaram a preocupação de que essa tecnologia represente um ‘risco existencial’, sendo capaz de agir de formas que podem ameaçar a sobrevivência da humanidade”, alerta o Vaticano.
A nota reflete sobre a relação da humanidade com Deus, indicando que “à medida que a sociedade se afasta da ligação com o transcendente, alguns são tentados a recorrer à IA em busca de sentido ou de realização”.
O texto foi aprovado pelo Papa, numa audiência concedida aos responsáveis dos dicastérios para a Doutrina da Fé e da Cultura e Educação, a 14 de janeiro, sendo publicado, simbolicamente, esta terça-feira, dia em que o calendário litúrgico celebra São Tomás de Aquino, doutor da Igreja.
(Com Ecclesia)