Pelo padre José Júlio Rocha
A criança, de dez anos, sofria de dores horríveis, com guinadas agudas, no interior da coxa direita, a partir do tendão que liga à virilha. Os pais correram médicos e até foram com ele ao “endireita”. Ninguém sabia qual a maleita do miúdo. No hospital, o médico observou-o e alvitrou que fosse uma espécie rara de tendinite. O miúdo foi levado para um espaço aberto, deitado numa espécie de sofá, porque mal se sustinha de pé, enquanto o médico e a mãe do miúdo falavam no consultório.
Alguém vestido de bata branca, provavelmente médico, passou ao lado do miúdo e parou. Despiu-lhe as calças e a cuecas até aos tornozelos e começou a apalpar perto da coxa. Não apalpou só a coxa, tocou, várias vezes, reiteradamente, propositadamente, onde não devia. O miúdo incomodou-se, queixou-se, tentou desviar com as mãos… mas era o senhor doutor… O miúdo nunca mais falou do assunto.
Estávamos provavelmente em 1979 e esse miúdo era eu. Não gostei mesmo nada, embora o acontecimento, de único e rápido, não me deixasse traumatizado, até porque eu não fazia ideia de quem era aquele homem estranho que nunca tinha visto e nunca mais vi e só mais tarde, depois de adulto, me tivesse apercebido da gravidade das intenções e dos atos do homem. Foi uma experiência fria, gelada, marcante. E não passou daquilo.
O número de crianças que foi vítima de alguma forma de abuso sexual no nosso país é alarmante. É quase uma questão endémica… à Igreja cabe, também como missão sua, denunciar as injustiças sociais e os crimes que se cometem, tantas vezes impunemente, contra os mais pobres e débeis. A hediondez do crime de abuso de menores devia fazer arrepiar os cabelos de todo aquele que se diz pertencer à Igreja, seguir Jesus, ser cristão. Devia ser suficiente para fazer levantar qualquer cristão da cadeira, sair à rua, berrar nos púlpitos, acusar os criminosos, defender as vítimas, protegê-las, pelo menos com a mesma veemência com que condena o aborto e as grandes injustiças sociais, os grandes crimes contra a humanidade, seguindo à letra as palavras de Jesus: “Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar.”
Foi o que se viu… É o que se vê. Vergonha? É muito pouco.
O relatório da Comissão Independente caiu como uma bomba. Não é que o não esperássemos, já estava programado há um ano. Mas é como se uma pessoa querida estivesse muito doente, a sofrer imenso e nós esperamos que a morte venha aliviar as suas dores. E, no entanto, quando chega a morte, é sempre um choque, um desgosto, uma dor.
O alcance dos abusos sexuais a menores dentro da Igreja é catastrófico. Não só pelo número de vítimas, que deve ultrapassar largamente os quase cinco mil referidos, nos últimos setenta anos, mas também pela instituição que os cometeu. À Igreja cabia cuidar, amar e formar as crianças que lhe foram confiadas, seja em instituições de acolhimento, seja na catequese, no escutismo, nos acólitos, etc. E não foram casos raros, espalhados no tempo e no espaço. Há que admitir que é uma hecatombe sistémica em certos ambientes eclesiais, ampliada por dois fatores bastante incómodos para a Igreja: o poder e o silêncio.
O poder sempre foi a grande fraqueza da Igreja. Não é por acaso que Jesus insiste, muito mais do que em qualquer outro assunto, no dever absoluto da humildade e do serviço: todo o poder deve ser serviço. Mas a tentação do poder é superior às forças humanas e a Igreja, em determinadas alturas, foi absoluta: “Quem guardará os guardiões?” Se a Igreja se tornou tão poderosa que ninguém a podia fiscalizar, muitas vezes caiu na tentação desse poder sem que ninguém a julgasse. Muitas vezes esqueceu-se de Deus e da mensagem do Evangelho. O poder é um mal.
Se ao poder juntamos o silêncio, temos o caldo perfeito para a tempestade perfeita. O que me esgaça a alma por dentro é esse número indefinido mas demasiado imenso de crianças que, no silêncio das sacristias, dos quartos, das camas, dos confessionários, foram sendo sistemática e escondidamente destruídas diante do silêncio e da conivência reinantes. Não há dúvida de que havia uma cultura de encobrimento culpável. Há muito que mudar se quisermos erradicar essa cultura doentia e bafienta, que misturou Jesus Cristo com uma das mais hediondas formas de fazer o mal.
O enquadramento cronológico dos casos em Portugal revela que o grande número de denúncias se refere aos anos sessenta, setenta e oitenta. Em noventa diminui e no século XXI cai bastante. Explicação? Pode ser a questão da sensibilidade aos direitos das crianças, o mediatismo que tudo isso começou a ter com o caso “Spotlight”, em Boston, nos anos noventa. Mas há uma explicação mais plausível: as vítimas têm receio de denunciar padres ainda no ativo, principalmente por que as leva a enfrentar o agressor, a ir a tribunal, a esmiuçar publicamente os seus traumas íntimos. Resta ainda muito silêncio.
Daniel Sampaio, membro da Comissão Independente, assustou-me. Disse que o drama do abuso de menores vai muita para além da Igreja, o que não constitui novidade, e acrescentou que 18% de meninas e 8% de meninos, antes dos 18 anos, em Portugal, são vítimas de alguma forma de abuso sexual. Pus-me a fazer contas de cabeça e, admitindo que esses números tenham sido uma constante nos últimos cinquenta anos, teremos cerca de um milhão de pessoas no nosso País que foram vítimas, a grande maioria no âmbito familiar. São números de pandemia! Ainda o véu está a levantar as pontas e vamo-nos dando conta de que esse é um mal dantesco no nosso país, e há, também no país, uma cultura de silêncio e conivência que muitas vidas destruiu.
Isto serve de desculpa para a Igreja? Não. Há todo um processo inaudito por fazer. Depois do Concílio, temos vindo a encontrar uma Igreja cada vez menos afeta ao poder enquanto tal e mais empenhada no serviço. Poder é servir. Mas há muito caminho que ainda falta ser percorrido. E grande parte desse caminho passa por rever, com base em critérios científicos e humanos atuais, toda a ética sexual da Igreja. E não é com moralistas nem clérigos. É com quem sabe.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio