Pelo padre José Júlio Rocha
Em 1984 tinha eu as primeiras aulas de filosofia. O incontestável Dr. Caetano Tomás, que ajudou muita gente nesta terra de Cristo, era o professor. Ainda me recordo das primeiras aulas, sem livro nem apontamentos do professor, quando estudávamos os primeiros passos da filosofia pré-socrática. Ao que ele dizia, o primeiro problema filosófico da história ocidental referia-se ao contraste entre o ser e a mudança. Os primeiros filósofos chegaram a uma aporia, um problema sem solução. Era formulada assim:
O que muda faz-se.
O que se faz, faz-se de alguma coisa ou não se faz de nada.
Do nada, nada se faz.
De alguma coisa nada se faz, porque aquilo que é não se faz:
logo, ou não há ser ou não há mudança.
O progressismo e o conservadorismo, plasmados nas escolas Jónia e Eleata, têm aqui a sua primeira expressão: os progressistas pela mudança, os conservadores pelo ser. Até hoje!
Tales de Mileto, que andou metido nisto, é considerado o primeiro filósofo da Grécia antiga. Filósofo, matemático e astrónomo, era alvo de chacota dos seus conterrâneos e contemporâneos por ser extremamente distraído e andar com a cabeça nas nuvens, embebido em pensamentos inúteis, e alheado do dia-a-dia. É a ele que se refere a canção dos “Cabeças no Ar”, sobre um professor de português que tropeçou, tal “como aquele sábio grego que, de tanto olhar o céu, caiu dentro de um poço.” Tornou-se o paradigma daqueles que, de tanto viverem nas nuvens, de tanto procurarem o alto, acabam por se espalhar nas coisas mais corriqueiras da vida. Não sonhes demasiado, diz quem sabe: acordar magoa.
Aconteceu-me algo semelhante, embora a queda no poço seja, graças a Deus, figurada.
As festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres são uma manifestação religiosa ímpar em Portugal. Participei nelas três vezes, ainda miúdo, no Seminário Menor, entre 1982 e 84. Fascinavam-me aquelas miríades de luzes, aquelas muitas dezenas de milhares de fiéis, as manifestações impressionantes de fé, a procissão, tão longa e tão lenta, tão solene e silenciosa. Fascinava-me sobretudo a imagem renascentista do “Ecce Homo”, nutrido de um olhar abstrato, cheio de ternura, envolto naquelas joias de valor incalculável.
Há trinta e oito anos que lá não vou. A oportunidade não podia esperar: quem virá presidir, já neste fim-de-semana, às festas é o cardeal José Tolentino de Mendonça, amigo de juventude, homem extraordinário, cardeal segundo o coração do Papa Francisco.
Foi uma trabalheira! Não é fácil a quem tem duas paróquias ausentar-se num fim-de-semana, tanto mais em tempo de Espírito Santo. Contato puxa contato, lá consegui livrar-me desses trabalhos e, finalmente livre, dediquei-me a pôr a cabeça nas nuvens e a imaginar, qual tales de Mileto, como seriam os dias passados por lá, o pôr a conversa em dia com o amigo cardeal, o recordar a beleza sumptuosa daquela devoção inigualável, revivendo a infância e juventude, os cheiros, as músicas, as cores, as luzes.
Dia de embarque marcado para quinta-feira, só tinha que deixar a gata em casa da avó e abalar para o aeroporto, para São Miguel, onde já me esperava um jantar com amigos, cardeal Tolentino incluído.
Acordo na quarta-feira com uma ténue e estranha sensação na garganta. Uma dor pelas costas abaixo e uma impressão nas articulações. Não vá o diabo tecê-las, comprei três testes rápidos na farmácia e, bem preocupado, regressei a casa, onde fiz um teste. Nada. Nada? O que será aquela sombrinha no “T” do teste? Não deve ser nada… Só que a sombrinha adensou-se, avermelhou, e lá fiquei eu com dois riscos no teste, um dos quais, o que identificava a COVID-19, vermelho como a camisola do benfica. Olhei para o teste como o guarda-redes olha a bola no fundo da baliza, depois de um frango, no último minuto, que valeu a descida de divisão. E eu, que me julgava imune, sem medo, protegido, ali a dar com os quatro costados no fundo do poço.
Tenho estado para aqui meio desgostoso, meio resignado, a gramar umas dores no corpo que aumentam como aumenta a febre, expetoração quanta queira e umas dores de cabeça que mais parecem ser as dores de uma alma às avessas.
Diz-se que Tales de Mileto, ao observar os astros, previu uma grande safra de azeite. Como ninguém o levava a sério, ninguém acreditou. Tales comprou então todos os lagares de azeite que pode. Riram-se tanto dele até que pararam de rir quando enriqueceu com a safra do azeite. Isto, ao que parece, depois de ter saído do poço.
Eu ainda cá estou. Louvado seja Deus!
Este artigo foi publicado na edição desta sexta feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.