De cada vez que o Tolentino Mendonça escreve um poema, há um vulcão por debaixo das palavras.
E é sempre com estremecimento que recordo aquele verso, dorido de paz e desassossego: “se tiveres de escolher um reino, escolhe o relento”. Nunca perguntes a um poeta a razão do seu verso, ou porquê o escreveu, muito menos o que sentia naquele momento ou com que intenções o idealizou. É tarefa inútil. Depois de escrito, o verso é de quem o lê. Temo que o Tolentino me tenha plagiado no preciso momento em que li esse verso…
Há poucos dias, partiu para outra Casa um amigo por quem nutri uma das melhores amizades que guardo na memória: o David Fagundes. Conhecemo-nos há uns bons vinte e cinco anos, quando ele entrou no Seminário de Angra, já eu por lá andava. Vinha daquela massa da juventude mais bela do mundo que, com um violão às costas e o nome de Jesus no peito, corria cantos e recantos da ilha Terceira, nos grupos de jovens, nos retiros, nos encontros e celebrações, numa espécie de entusiasmo que só uma triste realidade, chamada “idade adulta”, consegue, às vezes, vencer.
O David era um ser humano estranho. Daqueles raros espécimes a quem se pode confiar tudo, porque era como uma espécie de espelho, outro de nós, que estava ali, ali mesmo e não em qualquer outro lugar da Terra. Tardes e noites adentro, falávamos de projectos e ilusões, amores adolescentes e maneiras lindas de falar de Jesus aos jovens. E havia um mundo inteiro de sonhos a desbravar. Naquele tempo, era tão fácil deixar tudo para seguir Jesus… Renunciar a confortos e preconceitos, paixões e egoísmos. Jesus precisava de nós? Só tínhamos de ter um coração maior que o peito (e, naquele tempo, isso era fácil), uma enorme vontade de rir das coisas e com elas, e um violão para cantar quase todas as formas de ser feliz.
O David era um sonhador. E os sonhadores às vezes magoam-se ao embater no chão. Posso dizer que não foi fácil para ele o embate com a instituição cristã: as estruturas, a história, a sistematização inflexível da teologia, a rigidez das planificações e dos deveres pastorais que sufocavam a força da espontaneidade. Os ritualismos e as vaidades sem alma. E sobretudo a falta de fé na acção do Espírito Santo, que ele via, com desgosto, nas acções e nas almas de muitos que, como eu agora, tinham responsabilidades mais delicadas na Igreja, e, por medo de falhar, se barricavam em sei lá quantas desculpas disfarçadas de fé ou dever cristão.
Dizia-me às vezes que, se amássemos deveras os inimigos, o mundo deixaria de ter inimigos e eu ria-me do seu idealismo indomável. Hoje não rio. Nem choro. Só lamento não ter dado um pouco mais que tudo de mim por essa verdade, a única pela qual vale a pena a gente dar razão inteira à vida: o Amor.
O David acabou por abandonar o seminário e o seu contagiante sonho vocacional. Foi difícil acompanhar a sua descida a Emaús. O sonho ainda intacto, a realidade tão longe, tão fria, tão necessária, tão cobardemente sem remédio. Ainda hoje não percebo como é que o melhor do nosso idealismo juvenil sufoca aos poucos, sob o peso daquilo a que chamamos “bom senso”, e acabamos por sucumbir, mesmo que docemente, sem pedir em troca nem um prato de lentilhas.
O David seguiu o seu caminho, como eu. Reencontrámo-nos anos depois, como se fosse o dia seguinte. E rimos das anedotas, dos momentos difíceis, dos fáceis, rimo-nos da vida, que ela merece ser “rida”. Disse-me que acreditava ainda em muitos dos seus sonhos. Não podia ser de outra forma. Há pouco tempo, numa chamada telefónica convidou-me a trabalhar com ele num movimento diocesano. Lá estava o nosso David outra vez a colocar o violão às costas.
Depois morreu.
Assim, como quem não quer a coisa, saibamos escolher o relento como o nosso reino, a nossa casa, a nossa vida. Belos como os lírios, livres como as aves do céu. E o David, marinheiro com todos os portulanos que ainda houver por inventar, de violão às costas. A vida, a morte e a saudade ainda têm que aprender muito com a gente que sonha.
Pe Júlio Rocha