Por Carmo Rodeia
Tenho consciência de que a finitude do ser humano traz ao de cima uma série de sobressaltos e outras tantas preocupações, sobretudo quando estamos para lá da metade da vida, em que começamos a pensar de outra forma no fim. E também sei, que nós, conscientes da vida e da morte, erramos muitas vezes. Por isso, tenho alguma dificuldade em perceber soluções que institucionalizem a possibilidade de tomar decisões extremas quando estamos em situações limite. Não do ponto de vista individual, mas coletivo.
Vem isto a propósito do debate instalado no espaço público, e bem, sobre a legalização da eutanásia. Não sou especialista no assunto. E, por isso, este Entrelinhas é mais uma reflexão em alta voz.
Hoje, felizmente, quer a medicina quer a própria Lei dos cuidados paliativos permitem perspetivar soluções para a tal dignidade a que todos temos direito no fim da vida, no momento da morte, sempre que o conseguimos antever do ponto vista médico. Desde logo, podemos pedir a interrupção de uma obstinação terapêutica, aliás desaconselhada por todos, e dizer simplesmente que não queremos prolongar o tratamento. Por outro lado, há meios técnicos de atenuar a dor e que permitem que tenhamos uma morte natural, com o mínimo de sofrimento, como é o caso da sedação paliativa terminal.
Por isso, não posso deixar de reafirmar que a eutanásia é uma opção radical. Legítima, com certeza, e fundada na liberdade individual. O drama é que a liberdade, sendo um direito fundamental, não o será de forma absoluta. Não vivemos numa redoma e a nossa liberdade é sempre condicionada pela nossa vontade que é ditada pelas circunstâncias, pelo contexto e todos sabemos como no fim da vida, seja por velhice, o que não é o caso nesta discussão (mas pode vir a ser!), seja por doença incapacitante, incurável e devastadora, muitas vezes ficamos sozinhos. Com cuidados médicos, mas sozinhos. Com muita gente à volta, mas ainda assim sozinhos. Em qualquer dos casos, sabemos bem como podemos reagir. Uma sociedade desumanizada, que não cuida do outro e que vê no outro um ser descartável é uma sociedade sem alma e quem está sozinho, e se sente efetivamente sozinho, pode ser conduzido a opções radicais. Basta olharmos em volta e certamente que esta não nos será uma situação alheia. Por isso, não é aceitável comprometer o Estado na prestação de um serviço para que a pessoa acabe com a vida. Isso não se chama dar dignidade na morte mas desproteger a vida.
Uma vez mais, francamente, não consigo perceber como é que esta “liberdade” constitui um avanço civilizacional.
O direito à morte com dignidade está implícito no direito à vida que é fundamental e inviolável. Quanto ao resto são opções. E, sim, ao legalizarmos a eutanásia estaremos, porventura a legalizar o direito a morrer sozinho, bem ao jeito dos tempos de hoje, em que a solidão impera na vida e agora é igualmente reforçada na morte, porque tudo podemos individualmente. Este é o paradigma da liberdade moderna.
A eutanásia, a menos que me provem o contrário, é uma opção extremada de ver o fim da nossa vida. Legalizá-la em nome da hipotética vontade de uns quantos, que não podemos senão respeitar e acarinhar, partilhando o seu sofrimento, é abrir a porta à banalização. E, a minha opção, e aquela que eu gostava de ver plasmada na lei, feita por aqueles em quem votei, é a opção pela vida e não pela possibilidade da banalização da morte. Uma legislação que transforme a morte a pedido numa coisa corriqueira, ainda que com mecanismos de controle apertados, mas tão latos quanto os que as propostas legislativas que por agora se debatem podem antecipar, não será uma boa legislação. E, sobretudo, não será um bom sinal para o futuro.
Demorámos tanto tempo (tempo demais!), para estarmos todos de acordo sobre a inviolabilidade da vida humana, ainda e sobretudo por questões criminais.
Estamos todos de acordo que ninguém deve decidir, facilitar, ajudar ou tirar a vida a outra pessoa. E que quem o faz deve ser responsabilizado. Com franqueza não vejo razões para isso ser alterado.