Pelo Padre José Júlio Rocha
Sentado no meu quarto, onde se avista a luz do sol a brilhar no verde intenso dos Açores, neste primeiro dia de Primavera, sinto um nó na garganta, um lento murro no estômago, ao aperceber-me, com uma viva sensação de impotência, que não vou poder celebrar a Sagrada Eucaristia dominical ao meu Povo. Fonte do Bastardo e Porto Martins, na ilha Terceira, bem como todas as paróquias do Pais e de quase toda a Europa, não vão participar na bênção do Santo Sacramento.
Muitas pessoas, sobretudo aquelas que vivem mais intensamente a sua fé, que bebem os sacramentos, não o vão poder fazer neste momento, e vão sentir o vazio, esse vazio que sabe a orfandade, de não poder receber a Sagrada Comunhão, dom de Deus, alimento para o caminho, refúgio para o sofrimento, para o medo e para a angústia. Ainda mais nestes dias difíceis, quando tanto precisamos da mão carinhosa do Pai, da Sua proteção, da Sua voz, “não tenhas receio, Eu estou aqui.”
São muitas as pessoas que formulam a pergunta terrível, que bate, prepotente, no coração de cada cristão, de cada crente: onde está o nosso deus, o nosso pai que é amor, precisamente quando mais precisamos dele? Abandonou-nos?
A história da humanidade está cheia de crises como esta que estamos a viver agora, e até muito piores. E em todos os tempos, em todas as catástrofes, o homem pôs-se esta pergunta. Não podemos, no entanto, pensar num Deus que está fisicamente presente em todas as realidades terrestres e que resolve todos os males com um toque de varinha mágica. Não seria precisa a fé, já estaríamos no Reino da Felicidade Absoluta. Enquanto estivermos aqui, neste minúsculo planeta, estamos sujeitos às contingências do “homo viator”, falível, sujeito à doença, ao mal, à morte.
Nestes momentos, recordo sempre a agonia de Jesus no Horto das Oliveiras quando, suando sangue, pediu ao Pai que afastasse d’Ele aquele cálice. E, no entanto, sofreu até ao fim as consequências da Sua total doação à Missão salvadora, ao ponto de gritar, no último suspiro da Sua agonia: “Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?” Até o próprio Jesus fez a pergunta terrível. Não podemos ter dúvidas de uma realidade: Deus ama-nos. E o mistério do Seu Amor manifesta-se por vias muito desconhecidas e insondáveis. Culpar Deus é a mais estulta das atitudes. Saber que Deus sofre connosco, com um sofrimento profundo e plenamente aceite, porque só quem ama verdadeiramente sofre verdadeiramente, é uma atitude plenamente cristã. A Salvação consiste nisto: Jesus está connosco, estejamos onde estivermos, na maior agonia ou na maior felicidade, na mais plena dor ou na mais plena alegria. Não nos abandona.
Recordo uma história real, passada no fim da II Grande Guerra, em França, e contada muitas vezes nos Cursilhos de Cristandade que, permitam-me, vou contar: uma igreja tinha sido bombardeada e o seu crucifixo, bela obra de arte, danificado. Enquanto se construía a igreja, o crucifixo foi a restaurar. No dia da inauguração, o crucifixo não estava completo: o artesão não conseguira concluir as mãos. Na missa, com o crucifixo ao lado, o padre disse ao povo: “Jesus não tem mãos. Neste momento, as mãos de Jesus são vocês.” Sim. Neste momento, nós somos as mãos de Deus. Os médicos, os enfermeiros, os profissionais de saúde, os bombeiros, as forças de segurança, os nossos líderes honestos e serenos, os que trabalham nos serviços essenciais para que o mundo não morra à míngua, são as mãos de Deus! E nós podemos ser os pés de Deus, se os nossos pés nos conduzirem a casa e não nos deixarem sair de casa por motivos fúteis. Deus deu-nos esta missão. Deus, agora, tem necessidade de nós, que também temos necessidade d’Ele. Saibamos ser as mãos, os pés, o coração de Deus. Só assim Deus atua e salva: é este o verdadeiro milagre.
Quanto à impossibilidade de participar na Eucaristia dominical, saibam os cristãos que todos os sacerdotes, por todo o país, por todo o mundo, estão, em privado, a celebrar a Eucaristia pelo seu Povo. Quando eu era padre novo, fui celebrar uma vez uma missa a uma paróquia não minha, a pedido de um colega. Só estavam lá sete pessoas. Desiludido, ao jantar, desabafei com um colega mais velho, dizendo-lhe que tinha celebrado missa apenas para sete pessoas. Ele corrigiu-me: “Júlio: nunca mais digas que celebraste missa para sete pessoas. Diz a verdade: vocês foram sete pessoas que celebraram a missa para o mundo inteiro.” É este o verdadeiro e absoluto valor da Sagrada Eucaristia. Onde quer que estejamos, mesmo impossibilitados de participar ativamente no Sacramento, saibamos que podemos receber abundantemente as suas graças. Neste momento somos todos doentes. E a graça da Eucaristia chega a todos os doentes, mesmo quando nela não participam ativamente.
Tenho visto, com pena, muitas pessoas a criticarem a ausência da Igreja neste drama do coronavírus COVID-19. Não é verdade, e as críticas que surgem são, na maioria das vezes, infundadas, mal-intencionadas e ressabiadas. Salvo algumas exceções, que, infelizmente acontecem em todos os ramos da vida, todos os sacerdotes se empenham em estar, da melhor maneira possível, presentes ao seu Povo. São as missas celebradas via internet, as orações, as palavras de conforto, os apelos à fé e à paz. A Diocese de Angra, por exemplo, foi das primeiras instituições a disponibilizar um edifício, neste caso a Clínica do Bom Jesus em São Miguel, para o que for preciso no combate a esta crise. E mais dará, e tudo dará, casas, passais, centros pastorais e paroquiais, igrejas, se preciso for, tudo, no cenário absolutamente improvável de a crise se transformar numa catástrofe humanitária nos Açores. Por todo o mundo, milhões de leigos, milhões de seres humanos, inspirados nos valores do Evangelho, dão a vida, nos hospitais e noutros lugares, para debelarem esta pandemia. Eles também são Igreja, ou melhor, são a fatia mais importante e primordial da Igreja.
É meu dever de consciência deplorar a atitude de certos governantes que ainda estão a brincar com toda esta situação. O presidente do Brasil, por exemplo, que preside aos destinos daquele amado país, ainda não viu quase nada para além do seu umbigo. Não percebe a catástrofe que é um país daquelas dimensões se transformar numa Itália em ponto quatro vezes maior: depois de ter gozado com tudo, de ter confraternizado com centenas de apoiantes em plena crise, de celebrar abundantemente o seu aniversário, de dizer que os Media são alarmistas, vem agora negar o encerramento das celebrações públicas do culto, porque os crentes precisam do conforto dos seus pastores, numa clara cedência às pressões dos evangélicos e outros cristãos que o apoiaram e apoiam. Na Peste Negra, que devorou um terço da população da Europa em meados do século XIV, o povo acudia em massa a rezar às igrejas pelo apaziguamento da cólera de Deus, porque, acreditavam, nas igrejas Deus não permitia a disseminação da doença. Foi este o fator que mais contribuiu para a mortandade catastrófica que quase tirou a Europa do mapa. Não estamos numa Peste Negra, muito longe disso. Mas Bolsonaro e outros ainda não saíram da Idade Média.
O mandamento do Amor, a mais bela mensagem cristã, adapta-se, necessariamente, aos tempos. Neste tempo conturbado, amar significa afastar-se, ficar em casa. Se o cumprirmos, em breve teremos o júbilo de regressar às outras medidas do Amor.
Deixo-vos, por fim, um poema, que muitos conhecem, mas que vale a pena reler:
PEGADAS NA AREIA
Uma noite eu tive um sonho…
Sonhei que andava a passear na praia com o Senhor, e, no firmamento, passavam cenas da minha vida.
Após cada cena que passava, percebi que ficavam dois pares de pegadas na areia: um era meu e o outro era do Senhor.
Quando a ultima cena da minha vida passou diante de nós, olhei para trás, para as pegadas na areia, e notei que muitas vezes, no caminho da minha vida, havia apenas um par de pegadas na areia.
Notei também que isso aconteceu nos momentos mais difíceis e angustiosos do meu viver. Isso aborreceu-me deveras e perguntei então ao Senhor:
– Senhor, Tu disseste-me que, uma vez que resolvi seguir-Te, Tu andarias sempre comigo, em todos os caminhos. Contudo, notei que durante as maiores tribulações do meu viver, havia apenas um par de pegadas na areia. Não compreendo porque é que, nas horas em que eu mais necessitava de Ti, Tu me deixaste sozinho.
O Senhor respondeu-me:
– Meu querido filho, jamais te deixaria nas horas da prova e do sofrimento. Quando viste, na areia, apenas um par de pegadas, eram as minhas. Foi exatamente aí que peguei em ti ao colo.
*Este artigo foi publicado, em simultâneo, no site digital SeteMargens e na Agência Ecclesia