65 anos de idade, 41 de sacerdócio.
O Padre Abel Vieira, Pároco da Matriz da Praia da Vitória, o concelho mais afetado pelo turbulhão social provocado pelo anuncio da retirada das forças norte americanas da base das Lajes, aceitou o desafio do Sítio Igreja Açores para responder a questões variadas.
Com a frontalidade que lhe é reconhecida fala do papel da igreja neste contexto social “catastrófico”, cuja “denúncia também faz parte da sua missão profética”, embora nem sempre cumprida; “sinto que bispos e padres têm sido vozes fracas dos sem voz nos últimos anos”, sobretudo atendendo ao “novo mapa de pobreza” que deveria provocar “um sobressalto cívico” , a começar por uma maior articulação na ação social da igreja, a que falta “coordenação e maturidade”.
O que atribui a várias causas, entre elas “falta de formação” no pensamento social da igreja. “Onde estão os cristãos comprometidos com a sociedade, a partir das paróquias que temos?”, questiona colocando o dedo na ferida de um “sistema eclesiástico que herdamos e pesa como chumbo” e que vive agora “um abanão” trazido pelo Papa Francisco, por quem se diz “completamente apanhado por dentro”, embora reconheça que mais importante “que olhar para o dedo dos papas como estrelas” é preciso ver “para onde eles apontam”.
Olhando para a igreja nos Açores, de onde não sai desde 2001, confessa a sua incapacidade para responder a uma pergunta crucial que é a de saber se a igreja se afastou ou foram os fieis que se afastaram, para logo de seguida dizer “que 80 % dos açorianos não se sentem bem na sua Igreja”.
Ao repto lançado pelo Bispo de Angra, de uma igreja em saída missionária, lembra que há muito por fazer mas que às vezes sente que falta engenho e arte para “mexer com o sistema”, “rever estruturas” e promover “uma pastoral de proximidade”.
A pouco mais de uma ano de se retirar confessa um desejo: “Gostava ainda de ser, viver e trabalhar apenas como padre, com a cabeça limpa de paróquias”.
Sítio Igreja Açores- É pároco na Matriz da Praia, o coração do concelho que mais vai sofrer nos próximos anos, com a debandada dos norte americanos. Como é que a comunidade paroquial está a viver este problema?
Pe Abel Vieira- Infelizmente, o problema ultrapassa de longe «as portas» da Matriz da Praia, comunidade pequena e envelhecida, embora centro histórico de uma pequena e jovem cidade. Alarga-se a todo o concelho de Praia da Vitória e à ilha Terceira. Mas, a primeira sensação geral é de apreensão, tanto pelo contexto carregado de incertezas em que já vivemos, como pelas consequências previsíveis para as famílias e economia local, em rendimentos diretos e indiretos. Penso que ficam ainda por esclarecer muitas dúvidas nos próximos meses sobre a real dimensão do problema, desde já merecedor da nossa maior atenção.
Sítio Igreja Açores- A igreja tem sempre as portas abertas. O desemprego é uma realidade que não chegou agora. Aliás, agora é só acentuado. Sente este problema “à porta de casa”?
Pe Abel Vieira– Sim, e de que maneira! O desemprego é, também entre nós, um flagelo social, desde logo porque viola um direito fundamental da pessoa humana, o direito ao trabalho. Afeta a estabilidade emocional das pessoas, complica a vida digna de muitas famílias, compromete legítimos projetos e expetativas dos jovens, os mais qualificados estimulados a emigrar, portadores do sacrifício dos pais e investimento do país. Algumas famílias vão já emigrando também, sobretudo para o Canadá – como estava longe de imaginar desde os anos 60 – mal contendo as lágrimas ao fazer as malas. «Ei-los que partem» – de novo a mesma canção da nossa vil tristeza.
«À porta de casa» é frequente o toque da campainha, em nada comparável ao número de famílias que passam semanalmente pelo serviço de atendimento do «Centro Social Paroquial de Santa Cruz» e outras instituições vocacionadas para a solidariedade, públicas e privadas. Vivemos uma depressão social profunda desde 2008, a exigir uma solução diferente que passe pelo trabalho.
Sítio Igreja Açores- Há quem fale numa espécie de catástrofe social. Tem essa visão?
Pe Abel Vieira- A concretizar-se o desemprego na base das Lajes e com a dimensão anunciada, dizem-me que é previsível a emigração de cinco a dez mil pessoas da ilha Terceira na próxima década e uma quebra de 30 % do PIB do concelho, estima o senhor Presidente da Câmara Municipal. São números que fazem pensar, numa ilha com uma população pouco acima das 50.000 pessoas.
Mesmo com as indemnizações correspondentes aos anos de trabalho, são diversificadas as situações dos trabalhadores que ficarão no desemprego. Mas, preocupam-me mais os cerca de 500 postos de trabalho que não se renovarão sem uma alternativa credível, com os referidos reflexos indiretos na economia local. Mesmo que não seja uma «catástrofe social» no rigor do termo (pior se fosse um sismo…), é uma situação muito grave e preocupante num contexto de horizontes imensamente limitados no mercado de trabalho.
Trabalhar onde ou investir em quê? Uma lavoura que produza diariamente mil litros de leite terá este ano uma redução mensal de mais ou menos 900 €…Basta uma volta atenta pelo centro da cidade, em qualquer dia útil e a qualquer hora, para ficarmos a pensar «no outro lado do balcão» …Em criança pensava que todos os comerciantes eram ricos…Hoje não faltam espaços comerciais devolutos para novos arrendamentos que não aparecem.
Igreja Açores- O que é que a igreja, em concreto, pode fazer para auxiliar na mitigação destes problemas sociais?
Pe Abel Vieira- Um dia teremos de clarificar a quem nos referimos quando falamos de IGREJA e que esperança significa para o povo das nossas ilhas. Vamos admitir que falamos de todos os batizados, sem esquecer a dimensão institucional ferida na sua credibilidade, nem os «agentes de pastoral» também chamados à «alegria de ser povo», pelo papa Francisco na Evangelii Gaudium (268-274).
Há uns quatro anos, ainda umas oito paróquias da ilha Terceira não tinham organizado qualquer serviço de «pastoral social» por mais simples que fosse. Procuramos então que, em cada uma das cinco zonas, alguém fosse o rosto do «pilar social» da missão da Igreja, com alguns passos iniciais interessantes no sentido de um mínimo de coordenação.
Hoje, para além de contactos bilaterais de natureza pontual, sinto que falta um mínimo de coordenação regular entre as muitas instituições de que felizmente dispomos: a Cáritas de ilha, diluída numa Cáritas Diocesana que me parece excessivamente pesada e burocratizada; as quatro «Santíssimas» Casas da Misericórdia, estrategicamente bem distribuídas, pelo seu potencial de valências e recursos; as quase duas dezenas de Conferências Vicentinas, pobres de meios materiais mas ricas de uma proximidade dos pobres, quase familiar, quando não se tornam propriedade de ninguém; os numerosos Centros Sociais Paroquiais, quando não se reduzem a Centros de Convívio de Idosos e outros grupos de trabalho com vocação social.
Há como nunca, no passado recente, muitos voluntários por vezes esquecidos que dão o melhor de si aos outros, há uma «segurança social familiar» de reformados e pensionistas que matam a fome a filhos e netos, vítimas do desemprego de longa duração. Até quando? Não podemos fazer a «radiografia» e muito menos esquecer tanta caridade escondida, sem complexos quanto à palavra CARIDADE no seu sentido evangélico e mais genuíno.
Mas não estamos na América latina. Não temos a prática de nos sentirmos identificados, fora das igrejas os poucos que por lá passam, com os que se sentem esmagados na sua dignidade, apenas porque todos somos batizados e irmãos, nem vivemos nos dias de vozes proféticas como Hélder Câmara ou Óscar Romero. Tenho a sensação de que, bispos e padres, temos sido vozes fracas dos sem voz nos últimos anos, dramáticos para a dignidade deste povo.
Então, e respondendo diretamente à pergunta: que fazer para auxiliar na mitigação destes problemas sociais?
Falo apenas sobre as duas comunidades que sirvo.
No mais discutível e necessário assistencialismo de pequenos sacos plásticos para muitas famílias, o «Centro Social Paroquial de Santa Cruz», em articulação com a «Cáritas da ilha Terceira», manterá aberto o atendimento semanal e encaminhamento para outras instituições das situações que ultrapassem as suas possibilidades. Sei que estão sinalizadas já mais de cem famílias do concelho.
A comunidade, no seu todo, nunca assumiu o Centro Social como oportunidade para realizar esta vertente genética da missão da Igreja na paróquia. É o resultado de generosas direções e alguns voluntários e amigos do Centro Social.
O «Conselho Pastoral da Casa da Ribeira» e «Núcleo Paroquial da Cáritas» vai proceder nos próximos meses a um levantamento simples, rua a rua como expressão da «pastoral de proximidade», das situações de: jovens que procuram um primeiro emprego, desempregados de longa duração e casais em que ambos ou apenas um dos membros perdeu o trabalho.
Pretendemos fazer uma «radiografia do desemprego» no âmbito da paróquia para continuar a incomodar as consciências.
Sítio Igreja Açores- Aliás, às vezes, quem trabalha mais nesta vertente da ação sócio caritativa da igreja fica com a sensação de que o Estado coloca o problema à porta e sacode as mãos sem se preocupar sobre se há pão dentro da Igreja…
Pe Abel Vieira- Desde longa data, o Estado vem alijando responsabilidades sociais próprias na chamada sociedade civil e concretamente nas instituições que se assumem da Igreja. Penso que em alguns casos também a Igreja se põe «a jeito», com motivações carregadas de ambiguidade em conhecidas contrapartidas, carregando um regime concordatário com um Estado que se assume como laico. E ainda bem que, em Portugal, a Igreja não se confunde de todo com o Estado. Tudo passa por cooperação institucional e a solidariedade não tem fronteiras.
Em abono da verdade quero testemunhar uma excelente cooperação entre o «Centro Social Paroquial» e jovens assistentes sociais, com elevada qualificação técnica e humana, no âmbito concelhio. Há uma década apenas, tudo era muito mais complicado quando pensavam que a missão da Igreja se reduzia a fazer catequese e rezar nos tempos livres…
Sítio Igreja Açores- Esta crise veio, de resto, alargar o conceito da pobreza porque hoje quem pede, se calhar antes contribuía… Na sua paróquia é assim?
Pe Abel Vieira- Sim. O «mapa das pobrezas» mudou bastante na nossa sociedade e tendemos, com alguma frequência a insistir nas mesmas respostas e com as mesmas atitudes de aparentes ricos. Como desenvolver a pastoral social a partir dos pobres?
Persistem antigas mas surgem novas pobrezas, estas muito ligadas a diversas dependências e a uma cultura do supérfluo e das falsas aparências. De algum modo cada caso é um caso. Que fazer quando da manutenção do carro depende a continuidade do trabalho? Por isso, hoje, muitos pobres precisam viatura própria e bem sei o que custa…
Mas é fácil perceber o «trambolhão» no «patamar dos pobres» da chamada classe média, gente de bem e com a sua vida organizada que, ao perder o trabalho, se viu de um dia para o outro entalada entre os compromissos assumidos e os cortes de uma excessiva austeridade, imposta por governantes e tróikas sem sentido social. Conheço casos de fome com o marido e a esposa a trabalhar; casos em que os filhos tiveram de regressar da universidade a meio do sonho; divorciados que perderam as casas e os que mal «se suportam» para as manter; doentes sem acesso a medicamentos ou de um comprimido fazendo dois; crianças com fome nas escolas, apoiados por generosos professores; amigos a «emprestadar» a amigos, com pudor de se ver transformados em pedintes, uma questão de dignidade pessoal que compreendo.
As paróquias, evidentemente com menos recursos da partilha voluntária das famílias em cada ano que passa, sofrem bastante a pressão de situações desesperadas: evitar o corte da água e da luz, comprar uma garrafa de gás, pagar receitas de medicamentos, alimentos de emergência e outras solicitações fora do nosso alcance, por exemplo, quando se prendem com rendas de casa ou prestações em atraso.
Isto não se faz a um povo! Deve provocar um sobressalto cívico!
Sítio Igreja Açores- A igreja tem sabido dar resposta ao problema dos pobres? É que as vezes fica a sensação de que há, pelo menos, pouca denuncia…
Pe Abel Vieira- Concordo plenamente! Tudo isto e muito mais, do meu modesto ponto de vista, exigiria dos Bispos portugueses um «murro na mesa» a dizer BASTA! Não teria justificado uma «Carta Pastoral do Episcopado Português»? Uma forma clara de manifestar o seu lugar nesta encruzilhada scociopolítica, nos termos do nº 31 da EG: à frente do povo, no meio do povo e atrás do povo que se apresenta esmagado na sua dignidade, de muitas formas e em ampla percentagem.
Tenho gostado de algumas intervenções muito incisivas da «Comissão Nacional Justiça e Paz», dos «Movimentos de Pastoral Operária» e do «Presidente Nacional da Cáritas». Mas não quero esquecer outras vozes isoladas, fundamentadas e corajosas a partir da sua consciência cristã. A verdade é que, como pastores ao serviço de um povo, não podemos ficar «escondidos atrás dos arbustos», por razões de natureza institucional. Primeiro estão as pessoas! Nos regimes democráticos os governos só justificam a sua legitimidade quando servem o bem comum de todos os cidadãos.
A denúncia também faz parte da missão profética da Igreja!
Sítio Igreja Açores- Em momentos de crise, como o que estamos a passar, a Igreja devia intervir mais na vida pública?
Pe Abel Vieira– Mas não só nestes momentos de crise. Como antes sugeri, temos um histórico muito deficiente de presença e ação como cristãos no mundo: desde logo na família, na cultura, no trabalho, na vida económica, social e política.
Tem a ver com a insuficiente consciência batismal; com falta de formação moldada pelos princípios básicos do pensamento social da Igreja; com este modelo institucional de paróquia, demasiado administrativa, confinada aos templos, envelhecida, pouco participativa e desfasada das realidades e problemas de hoje. Basta olhar a larga maioria dos «movimentos espiritualistas» que se arrastam à sombra dos campanários com uma influência quase residual na sociedade. Onde estão os cristãos comprometidos com a sociedade, a partir das paróquias que temos?
Já era assim antes do Concílio Vaticano II, no anterior regime. Continuou assim porque não quisemos estudar, por exemplo, a GS, a «Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje» ou o AA, «Decreto sobre o Apostolado dos Leigos» e receio bem que continue assim depois da «Evangelii Gaudium» porque é mais fácil «deixar as coisas como estão», contrariamente ao que nos desafia o Papa Francisco.
Sítio Igreja Açores- O Papa tem sido uma voz autorizada nesta denuncia. Aliás as questões sociais vêm muito acentuadas na Exortação em vários capítulos… e o senhor tem feito um estudo aturado da exortação e é porventura o sacerdote mais solicitado para ações de formação sobre a Alegria do Evangelho. Como é que se pode evangelizar junto de famílias que não têm pão para por na mesa?
Pe Abel Vieira- Em primeiro lugar, não me sinto mais qualificado sobre a «Evangelii Gaudium» do que qualquer outro colega com sentido de Igreja e que «saiba ler». Dou-me conta de que muitos colegas se manifestam claramente envolvidos no programa deste pontificado, apenas condicionados como eu pelo «sistema eclesiástico» que herdamos e pesa como chumbo, pelo modelo tradicionalista de paróquias que não vemos bem como mudar. Como fazer? A questão é da ordem dos processos operativos, graduais mas com objetivos claros. Há que começar pelo nº 28 da EG (que parece ter esquecido as «tarefas fiscais» dos párocos…). Centra a nossa missão e a identidade da paróquia no essencial. É preciso muita coragem, despojamento e liberdade para transformar as paróquias em comunidades próximas da vida do povo.
Apenas a titulo de exemplo, deixo uma pergunta inocente: o que mudou mesmo na nossa Diocese e na minha paróquia em quase dois anos de pontificado e por causa da Evangelii Gaudium? Pelo menos vamos «ensalivando» por tudo quanto é sítio, como dizia um antigo mestre, ou seja, vamos divulgando e aprofundando o alcance do «abanão» trazido a esta Igreja pelo papa Francisco.
Quanto à sua pergunta ocorre-me a imagem do papa Francisco do «hospital de campanha» que o nosso Bispo cita quando nos propõe a «opção pelos últimos» nas «Orientações Diocesanas de Pastoral» para este ano que vai em meio: «Vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha, depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave, se tem o colesterol ou o nível de açúcar altos. Primeiro, devem-se curar as suas feridas. Depois podemos nos ocupar do restante. Curar as feridas, curar as feridas…e é preciso começar por baixo.» (19-08-13).
Primeiro é preciso, diria, que a ninguém faltem os «papos-secos» na situação de emergência social em que se encontram 25 % dos portugueses, no limiar da pobreza. Esta sim, é uma situação de catástrofe nacional a exigir um «governo de salvação social» em que as pessoas e famílias sejam a prioridade, antes da alta finança. Todos somos poucos para denunciar a ditadura financeira desta «economia que mata» e a expressão é mesmo do Papa.
Sítio Igreja Açores- Identifica-se com este pontificado?
Pe Abel Vieira- Completamente apanhado por dentro.
Mas acrescento que, embora goste do significado das «sandálias do pescador», nunca avaliei a qualidade dos Sucessores de Pedro, no último século, pelos sapatos que usam…Fiz um esforço bem-sucedido para descobrir quem era Joseph Ratzinger e tenho um apreço muito grande pelo que nos deixou Bento XVI em oito anos de pontificado, sublinhando outras prioridades, não em oposição mas em convergência com o atual. Receio que muitos não o tenham lido, e cito apenas dois exemplos, a «Deus Caritas Est», primeira de uma trilogia teologal, ou a «Caritas in Veritate». A sua «batalha» contra o relativismo continua nas linhas e entrelinhas do Papa Francisco e convêm não ser esquecida.
Não interessa ficar a olhar para o dedo dos Papas, como «estrelas» mas para onde eles apontam em cada hora, interpelando-nos para interpretar aos «sinais dos tempos» e reagir oportuna e consequentemente.
Em todo o caso, penso que começamos um novo ciclo no exercício do ministério petrino e espero que tenha a necessária continuidade para o futuro do cristianismo na forma católica. Com Francisco estamos bem servidos!
Sítio Igreja Açores- O Papa propõe mesmo muitas mudanças: ao clero, aos leigos; a sociedade. Hoje há menos crentes que, pelo menos, o assumam. Como é que a igreja se pode aproximar das pessoas?
Pe Abel Vieira- Sim, o Papa propõe uma «pastoral em conversão» (EG 25-33), desafia toda a Igreja à mudança, desde a mais modesta paróquia ao papado, não apenas uma individualista e intimista «conversão com jaculatórias e água benta…»
A mudança urgente traduz-se pelo envolvimento de todos numa nova «saída missionária».
Para mim, nunca foi claro se a Igreja (na sua dimensão institucional), é que se afastou das pessoas, ou se as pessoas (com imensa superficialidade), se distanciaram da Igreja de Jesus Cristo nestas ilhas, como em todo o ocidente. Deixo apenas a questão, com olhos para ver que 80 % dos açorianos não se sentem bem na sua Igreja. Daí a importância do apelo do Papa a uma Igreja com o perfil de «uma mãe de coração aberto» e uma «Igreja de portas abertas» (EG 46-49). Continuamos a cometer demasiados erros que, em linguagem desportiva, se pagam caro na alta competição desta sociedade em mudança de paradigma.
Temos muito a rever e mudar ao nível do modelo de comunidades: menos administrativas e burocráticas, mais comunitárias e participativas, fraternas e missionárias; muito mais centradas nas pessoas de hoje do que em costumes e tradições do passado; menos ritualistas e mais festivas; menos jurídicas e mais respeitadoras das consciências; com uma linguagem direta e incisiva que toda a gente entenda; muito mais livres de estruturas anacrónicas e sem «tiques esquisitos» de regresso ao passado. Apenas um exemplo: não me parece que seja saudável no presente e para o futuro da Diocese, a recente e desnecessária recomposição do Cabido da Catedral. Nada tenho contra as pessoas, apenas muitas reservas quanto à imagem, significado no “Dia da Diocese” e eficiência de tão veneranda instituição quando, finalmente, quase tudo pode e deve ser questionado a partir do essencial. A comunhão da Igreja Diocesana deve constituir-se com determinação a partir do essencial sem nos distrairmos com o acessório.
A verdade é que vamos com quase dois anos de pontificado e continuamos a sofrer com as nossas comunidades envelhecidas, não sei se oferecendo espaço à expansão muçulmana no ocidente…a médio prazo. Não «descolamos da cepa torta» de décadas de desvitalização pastoral das nossas comunidades.
Temos muita dificuldade em discernir e agarrar o essencial neste momento histórico.
Como cristãos, convém não continuar a «brincar em serviço» mas dar a devida atenção às linhas de renovação e missão do programa deste pontificado «caído do céu», quando já nem esperava uma tal surpresa.
Sítio Igreja Açores- Às vezes ouvindo o Papa, parece que ele anda muito mais depressa que o restante corpo da Igreja. Num líder isso é bom mas há que dar consistência ao caminho aberto. A Igreja está a conseguir fazê-lo?
Pe Abel Vieira- Parece-me que não e dou-me conta de muitas resistências, de sentido contrário, não só nos corredores do Vaticano. O clericalismo é muito forte dentro desta Igreja.
Apenas faço notar que, normalmente, as pressões de renovação surgem «de baixo». Neste caso, e sem esquecer a convocação do Concílio Vaticano II em 25-01-59, agora o impulso renovador vem «de cima», ou do centro, se já nos entendemos nesta Igreja como povo de Deus, em modelo circular. E com que força nos desafia e provoca! Tipo «epicentro» de uma crise sísmica de elevada potência espiritual e pastoral. Qualquer que seja o futuro próximo, esta Igreja nunca mais continuará como antes, a não ser «na casca». Pessoalmente, nunca mais me sentirei como até 12 de Março de 2013. No dia 13, pela noite fora e nos dias seguintes, já se percebia um tom diferente. Cedo percebi que o nosso Francisco ia «provocar estragos nas máquinas», uma imagem de que gosto. Desde então os sinais e mensagens deste Papa sucedem-se na média de uma por dia…
Estamos TODOS envolvidos numa dinâmica sinodal, queiramos saltar para dentro do barco e participar no processo, sem antigos medos nem novas ambiguidades.
Sítio Igreja Açors- Também ao nível diocesano, o prelado convidou o clero, os leigos e os agentes de pastoral a conhecerem-se melhor para melhor responderem aos desafios da sociedade atual…como vê este desafio?
Pe Abel Vieira- Desde logo, transpondo para a Diocese o que vinha expressando antes. Nem posso ter outro olhar, alheio a este Papa e a esta Igreja dos Açores que sirvo, até porque não saio da ilha desde 2001.
Vem-se falando de fazer uma leitura mais cuidada da nossa cultura insular em ordem a uma evangelização mais inculturada, da identificação das periferias existenciais nos lentos e tradicionais órgãos consultivos, de uma pastoral mais voltada para as pessoas e outros aspetos muito interessantes em sintonia com a «Evangelii Gaudium» e a nossa realidade. Espero que chegue a hora da ação.
Penso que nos falta «engenho e arte», no mínimo, para mexer concretamente com o sistema, a revisão de estruturas, a agilização de processos menos burocráticos que nos «fazem a vida negra», a implementação prática e ajustada de uma «pastoral de proximidade», muito mais comunitária. Tudo isto se faz com pessoas, a partir do Novo Testamento e não do Direito Canónico, com menos planos e agendas e muito mais atenção às pessoas e ao sopro do Espírito Santo. A edificação de uma Igreja sempre terá alguma coisa de original relativamente aos modelos políticos ou empresariais em curso na sociedade… Algumas coisas dependem de nós que por aí andamos com os pés no chão, outras nem tanto. Vamos a ver o que fazemos desta oportunidade soberana para não nos acontecer o mesmo acomodamento do pós-concílio com a marginalização dos que falaram mais alto. Hoje os tempos são outros.
Vou acompanhando o processo com atenção a todo o tipo de sinais, mantendo a disponibilidade para as pessoas e para a missão mais do que para perder tempo com instituições anacrónicas, até com algum humor quando vem a propósito…
Sítio Igreja Açores- Depois desta recolha e análise, quase que propondo a abertura de um caminho sinodal diocesano, o que é que podemos esperar em termos de diocese?
Pe Abel Vieira- Tenho a sensação de que a prioridade será embarcar nesta «dinâmica sinodal» do atual pontificado para mobilizar e vitalizar as comunidades que temos, antes de convocar um «Sínodo Diocesano». Este poderá acontecer no tempo oportuno.
Como envolver os batizados dos Açores na vida normal da sua Igreja, em comunidades de irmãos e discípulos, atentas á vida e disponíveis para a missão? Esta parece-me ser a questão central, muito na sequência do que antes fui partilhando, sem receitas nem panaceias simplistas para problemas complexos, mas com a abertura com que precisamos aprender a dialogar no interior da Igreja e também na sociedade plural em que vivemos.
Sítio Igreja Açores- Que papel gostaria de desempenhar nessa “mudança” anunciada?
Pe Abel Vieira- Apenas viver como pessoa humana, em relação com quem possa precisar de mim; assumir o Batismo como dom e missão para servir a Igreja como «irmão entre irmãos» (PO 3), no exercício do ministério recebido na ordenação diaconal em 21-01-72 e presbiteral em 03-06-73.
Tudo isto, enquanto tiver vida e alguma saúde, mesmo sem exercer funções paroquiais a partir de Agosto de 2016. Fico a dever muito mais do que dei às paróquias que tenho procurado servir como posso e sei, mas sinto que há mais vida e missão por fora das paróquias. Gostava ainda de ser, viver e trabalhar apenas como padre, com a cabeça «limpa de paróquias».
Nada mais!