Pelo Pe. Teodoro Medeiros
Uma equipa de três cientistas é destacada para estudar os efeitos de um desastre ecológico. Chegados ao país em causa, depressa começam a ter muitas dúvidas quanto aos seus anfitriões. Seja as bagagens (perdidas), seja a confusão sobre o ministério que os recebe (muda de nome) pré-anunciam o rapto dos dois homens e mulher.
Parte-se daqui para chegar aonde? A imagem dos homens encapuzados, bem armados, faz temer uma aventura de balas e helicópteros. Ao invés, Herzog presenteia os seus fiéis com um exercício tranquilo das suas virtudes: aos 74 anos, a lenda perpetua o seu próprio mito.
Nada de insólito para o homem que idealizou “Meu filho, Olha o que Fizeste?” ou “Woyzeck, o Soldado Atraiçoado” ou “Cobra Verde”. Isto para ir só ao que é menor, ao que não é considerado obra-prima (realizar filmes estratosféricos também tem as suas desvantagens).
“Salt and Fire”, ainda sem título em português, assinalará um regresso ao melhor Herzog? Sim, sem dúvida, mas diferente. No sentido de representação contida por parte dos atores: acabaram-se os tours de force com a capacidade interpretativa de Kinsky. Com toda a clareza: Klaus Kinski era um senhor distinto, para o melhor (ator) e o pior (pessoa).
Daí que fosse tão insuportável quanto sublime. Chegou a disparar uma caçadeira contra uma cabana cheia de figurantes, mais ou menos por birra. Herzog aguentou-se… e deu-lhe papéis muito bons. No caso de Woyzeck, o que poderia ser a melhor representação em celuloide de Judas sem Judas: o homem que percebe que destruiu aquilo em que acreditava.
Mas essas epopeias já lá vão e há novas histórias para contar: e é estimulante ver quem já se poderia ter reformado a dar cartas desta maneira. “Salt and Fire” é excelente. A história é atual, diria o Papa Francisco (ecologia). O filme é extraordinário, acrescentam os cinéfilos.
Depois de o ver, torna-se evidente que uma história diferente ou bem-intencionada não basta: é preciso saber dar-lhe forma, transformá-la numa experiência para os videntes. O cinema é magia ou truque? Não importa; a única condição é que não se (pre) veja o modo do engano.
Este rapaz fez o seu primeiro filme com uma câmara roubada; forjou papéis oficiais na América Latina, dando assim a si mesmo autorização de ir filmar na floresta. Hoje, ensina cinema num minicurso para jovens realizadores: a primeira coisa para que se têm de preparar é arrombar fechaduras. E não podem falar de yoga ou outras modas.
Por este filme, dá impressão que tenha lido Alain Rabatel, o linguista de Lyon. Rabatel que pôs em coma os narradores omniscientes. Bastou-lhe notar que os personagens também são omniscientes. Se o Zorro também lê a mente do adversário, ou adivinha que ele vai acabar na cadeia (e com um z na testa), não é omnisciente?
Abriu-se a era do PDV (ponto de vista) com visão interna ou externa: ou se lê o interior de cada personagem ou não, mesmo que seja através de uma descrição física. Temos assim um marido ciumento que não gosta do cabelo do “outro”: o ser loiro passa a ser defeito de caráter (visão interna sobre quem vê) apenas porque quem olha tem ciúmes.
O mesmo que dizer que essa cor só aparece para dar uma visão interna do outro personagem. Encontrámos o nosso ilusionista: quando dá a ver, é aí que nos engana e, em simetria, o que esconde é que é verdadeiro. Ou seja, o rapto dos cientistas não é só o que parece. Qual é o momento-chave? O realizador segue a regra aristotélica do reconhecimento; da criada de Ulisses que o lava e percebe diante de si por uma cicatriz antiga.
O PDV dela é posto no corpo do herói: a barba crescida e o aspeto miserável dizem da sua falta de esperança (grande Argos; não desanimou). Homero não terá lido Rabatel, mas a sua mestria permitiu que intuísse os fenómenos que melhor efeito têm. Porque sempre que se aprende algo de significativo sobre alguém, temos um reconhecimento.
Mas tem de chegar perto do fim; tem de ser o golpe de cena que fecha a trama. A partir desse momento, não resta saber mais que os resultados finais: já não há segredos. Herzog marca pontos porque nos mantém imersos na escuridão até tarde: a quem pertence o PDV dominante? É que o leitor de Homero sabia bem quem era o herói… aqui quem será?
Quando escancara as portas à história, dá-se aí a solução de todos os mistérios, uma surpresa sobre um dos personagens. Esfregamos os olhos e ligamos o que vimos antes (elementos externos) ao PDV correto (a visão interna de um dos personagens que é central à história do filme).
Com esta descrição, pode dar-se a ideia de um filme a cair para o lado do artificial, que aposte tudo na chicotada final. Seria infundado; tudo flui organicamente desde o início, limando-se as arestas para a revelação e a mensagem. E começam cedo os piscar de olho para não se levar tudo “tão a sério”.
Perto do fim, surgem novos intervenientes; serão símbolo do braço de ferro homem-natureza? E porque há este teste à doutora? A tensão do sequestro vai dando lugar à apreciação da arte e à sabedoria zen; o chilrear dos pássaros tinha anunciado o papel da mãe Terra; a exigência de tirar a máscara feita ao captor, não será feita também a nós?
Caiem-nos enfim as escamas dos nossos olhos: eis ali a cicatriz…