Por Carmo Rodeia
A realidade é o que é e a forma como a vemos é sempre condicionada pelas nossas próprias circunstâncias. E, em matéria de interpretações, cada um faz as que pode com a mesma legitimidade de todos os demais, embora seja desejável um certo bom senso.
Vem isto a propósito da nova exortação apostólica sobre a família, escrita pelo Papa Francisco e que foi divulgada na passada sexta feira.
O texto, se não o afirma claramente, pelo menos sugere algumas novidades: maior integração para os católicos divorciados, maior tolerância para os homossexuais, condenação do aborto, um novo entendimento da sexualidade e um maior acompanhamento dos casais jovens.
Quem esperava grandes cortes doutrinais desiludiu-se, pois a exortação apostólica, sobre o amor em família, é um enorme apelo à misericórdia, que não leva contudo a Igreja a renunciar a propor “o projeto pleno do matrimónio”. E só isso já não é pouco. Mas quem defendia que ficasse tudo na mesma também se enganou. Através dos verbos “Acompanhar”, “discernir” e “integrar”, o Papa Francisco propõe uma revolução silenciosa dentro da igreja, dando sobretudo indicações pastorais claras do seu entendimento sobre o que é a família hoje e como ela evoluiu.
O apelo à misericórdia e ao acompanhamento pastoral é recorrente e sobreleva em toda a exortação apostólica, apelando permanentemente a um “caminhar juntos”.
A lógica da integração é a chave do acolhimento pastoral, que deve assentar numa pastoral da misericórdia em vez de uma pastoral dos falhanços, “sentindo a igreja como uma mãe que acompanha sempre”, porque “fomos chamados a formar consciências, não a substitui-las” e “ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho”. E sublinha que, “ao acreditar que tudo é branco ou negro, às vezes escorraçamos as possibilidades de desenvolvimento”, os “pequenos passos” que levam à graça de Deus, e chama a atenção dos padres lembrando que o confessionário “não deve ser uma sala de torturas mas um lugar de misericórdia” e a comunhão “não é para os perfeitos mas para quem dela precisa”.
“Compreendo aqueles que preferem um cuidado pastoral mais rigoroso que não deixa lugar à confusão. Mas eu acredito sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito Santo semeia no meio da fraqueza humana”, afirma ainda e aqui está, a meu ver, uma das chaves de leitura desta exortação que fala sobretudo do Amor.
O Papa não aborda diretamente a questão do acesso aos sacramentos- da reconciliação e da comunhão- pelos divorciados recasados, como os jornalistas pretenderiam, mas deixa caminho livre para cada igreja particular explorar, tendo sempre presente um “itinerário de acompanhamento” que leve os fiéis a tomar consciência da sua posição face a Deus – “sem prescindir das exigências da verdade e da caridade presentes no evangelho”.
A Igreja até pode continuar a proíbir a comunhão aos divorciados recasados, por considerar que estes não estão “em estado de graça” ; mas o Papa lembra que isso também não significa que estejam em “pecado mortal”.
Outra preocupação do Papa é a preparação dos novos casais, que deve ser objeto de profunda reflexão pastoral. Sobre a sexualidade diz que é fundamental “a educação dos mais novos para o amor” mas também questiona a apresentação que é feita pelos responsáveis católicos, com “uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação” que acaba por ofuscar “o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua” e rejeita as correntes espirituais que “insistem em eliminar o desejo para se libertar da dor”.
A experiência do Papa, que acompanhou tantas famílias em dificuldades, vem agora ao de cima mais do que nunca. Nesta exortação Francisco mostra que gosta de nós e connosco partilha um texto inteligente e cheio de realismo, que nasce da fé vivida com ternura, capaz de nos oferecer uma esperança assente na responsabilidade, em tempos históricos conturbados.
Francisco quer um igreja inserida no mundo, atenta à realidade concreta dos seus dias, refletindo dentro da doutrina, as melhores soluções para transformar o mundo. E já baniu do seu dicionário a palavra exclusão. Ainda pensam que é pouco?