Carta ao amigo distante

Pelo Padre José Júlio Rocha

Escrevo-te, caro amigo, e assim me distraio um bocadinho. E, como estás muito longe, mais forte carrego nas teclas, e assim talvez me compreendas melhor.

Daqui a dias tenho que perder um avião. E como nunca gostei de me atrasar nos aeroportos, tenho que me levantar cedo, pois gosto de perder o avião a horas. Aliás, quero estar pronto, duche tomado, barba feita, perfume no rosto, para que esteja preparado na hora exata de não sair de casa.

A chuva vergasta os vidros da janela do meu quarto, o vento assobia pelas frinchas adentro e eu já tenho saudades de não ter saudades de sair de casa. E a chuva carrega mais forte. Sinto-me triste. Anteontem, com o sol a bater no meu mundo, tinha a consolação de não sair porque não queria. Hoje, com esta tempestade, não quero sair mas, infelizmente, também não posso. E isto traz-me ao peito a leve tristeza de um prisioneiro. É que a chuva calou o canto dos pássaros, que se costumam aninhar na araucária gigante que impera à frente da janela. O assobio do vento estancou a voz do silêncio da cidade. Nem consigo ouvir a ausência dos automóveis, o silêncio das vozes dos transeuntes.

Passará esta chuva persistente, este vento forte como passa toda a dor. Passará esta estação de silêncios e solidões, este tempo de reclusão e ansiedade. Mas quando passar, onde se encontrará o teu coração? E o meu? Agora, o tempo passa como um gato que dorme, sem pressa de acordar. Mas, se um dia acordares com medo, tens sempre aqui a minha mão. Que importa se eu estou de rastos, se eu estou longe? Tens aqui a minha mão distante, até porque o amanhã é tão incerto como o tempo desta ilha. Tens medo? Também eu estou com medo. Não tenhas medo do medo, porque é o medo que dá à luz a coragem. Não posso dizer a ninguém que tenho medo. E talvez seja este o mais belo gesto de coragem.

Que se contará, nos compêndios futuros da História, senão o número de infetados, o número de mortos, o heroísmo ou a cobardia? A liberdade dorme algures, num recôndito tabernáculo da nossa existência, protegida por arame farpado. Só se é livre quando se é livre por dentro.

Mundo ausente e desolado. A que é que damos valor senão àquilo que perdemos? As cores e os cheiros de uma primavera para sempre perdida. A impressão da paisagem mais bela aos nossos olhos. Sentar-se a uma mesa grande, cheia de vinho e gargalhadas. Banhar-se no mar azul de um verão incerto. Ganhar o pão de cada dia. O valor incalculável de um abraço.

A esperança. Ah! A doce esperança. Gloriosa esperança que nos mantém acordados para um mundo melhor. Onde vamos estar daqui a um mês, daqui a três meses, daqui a um ano, dez anos, amanhã? Se os homens não aprenderem a dar a vida, de que serviu todo este sacrifício? Não há senão sem beleza, acredita, meu irmão longínquo. O sórdido egoísmo de ontem será o grande derrotado desta batalha. Já não será possível existirmos como antes.

Estás longe, muito longe, talvez tão longe como a distância de atravessar a rua onde moro. Não te poder dar um abraço põe-nos nos antípodas deste mundo doente.

Chove agora torrencialmente. Um homem só, desamparado, desce a rua com passos tristes e lentos, encharcado no dilúvio.

Então o lobo habitará com o cordeiro,

e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito;

o novilho e o leão comerão juntos,

e um menino os conduzirá.

 

*Este texto foi publicado na edição desta sexta feira, dia 3 de abril, no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

Scroll to Top