Pelo padre José Júlio Rocha
O Toyota Starlet AN-61-10, vermelho e desengonçado, para aí da quarta mão, foi o primeiro carro que eu tive. Havia de espatifá-lo, num acidente que teve algo de heroico ou ridículo, em novembro de 1996, contra uma rocha enfeitada de hortênsias. Nesse lugar plantei uma criptoméria, que hoje é imponente e soberba, à beira da estrada, para nunca mais me esquecer que Deus salva a nossa vida todos os dias.
As criptomérias são orações que se levantam da terra e erguem os troncos e os ramos ao ar, mãos postas, a arrancar, das profundezas do chão ou da volatilidade do ar, tudo aquilo que precisam para chegar ao céu.
Quatro meses antes de plantar a árvore, em julho desse ano, faz agora 24 anos, decidi dar asas à minha insónia de uma noite de verão e sair de carro, já lá iam quase duas da manhã, espairecer a neurose de uma noite húmida e insuportável de verão. O velho Starlet começou a roncar a sua velhice pela ladeira da Serra do Cume acima, gemendo a cada curva noturna. A meio da serra uma nuvem baixa e espessa ofereceu-me a subida ainda mais íngreme e angustiada até que, uns duzentos metros depois, a nuvem ficou abaixo de mim e a serra reapareceu na sua curva imponente.
Lua cheia. Tenho para mim que foi a paisagem mais bela que a minha vista jamais viu, aquela da planície da Achada, completamente encoberta por uma nuvem que se estendia abaixo dos meus pés, serra da Ribeirinha ao fundo, Serra do Morião mais ao lado, Pico Alto à direita, todo esse vale encoberto e eu por cima. O luar embatia na superfície do nevoeiro e dava-lhe uma luminosidade intensa, quase fluorescente, tudo brilhava quase como se fosse dia, ali, abaixo dos meus pés. Tive a sensação de ser uma espécie de um deus menor, velando sobre a ilha adormecida, braços abertos a receber o ar puro e fresco das alturas e uma vontade irreprimível de rezar aquela solidão.
Recordo as sensações dessa noite todas as vezes que algo dentro de mim me fala de solidão. A solidão é uma coisa do inverno, dizem os poetas. Coisa que rima com nevoeiro, frio, vento, chuva, ruas vazias, bancos de jardim e cães de olhos tristes a ganir. Mas as hortênsias de verão, que ladeiam os caminhos do mato, os cerrados verdes e quadriculados, as vacas pachorrentas e o sol quente, o mar de azeite e as criptomérias lentas também nos falam de uma espécie de infinito que, por vezes, nos contam de uma escolha entre a solidão e o amor. Ou do amor que é compadre da solidão.
Hoje desço as estradas até ao mar. E o mar, por mais portulanos que se inventem, é mais desconhecido do que a superfície de Marte. Mais profundo do que o universo. Garanto que há mais baleias solitárias no mar do que em terra.
As estradas que dão para o mar são sempre a descer. E eu desço por uma delas. As valetas correm, sem água, na berma do caminho, muros toscos ainda têm força para suportar o musgo das pedras e os fetos das reentrâncias. As casas vão abandonando a estrada, os cerrados vão abandonando a estrada, as vinhas vão abandonando a estrada, os homens vão abandonando a estrada. Até a estrada vai abandonando a estrada, porque nenhuma estrada, até hoje, teve a coragem de acabar no mar. Faz uma curva repentina e liga-se a outra estrada que sobe outra vez para os homens, para as vinhas, os cerrados, as casas.
É precisamente aí, depois da última curva da estrada, diante da falésia que dá para o mar, é precisamente aí que não há nenhum farol. Um dia há de haver um monte depois da falésia, um promontório que ainda não existe, onde o presente, que às vezes atormenta e angustia, deixa de ser presente.
Há muitos anos que moro no monte que há de haver, bem junto ao mar.
*Este texto foi publicado no Diário Insular na rubrica Rua do Palácio.