Renuncia quaresmal de Angra reverte a favor das vítimas dos terramotos na Síria, mas bispo deixa apelo a que as comunidades cristãs sejam casa para todas as vítimas, em especial as dos abusos
D. Armando Esteves desafia os açorianos a aproveitarem a Quaresma para fazer um caminho de purificação em família ajudando a construir uma “casa” segura para todas as vítimas da guerra, da pobreza e dos abusos, na sua mensagem para a Quaresma de 2023, assente no capítulo 25 do Evangelho de São Mateus, para “que algo mude à nossa volta”.
“Quantos sofrem por não terem casa ou a verem ameaçada! São as casas destruídas pelas bombas na guerra na Ucrânia ou pelos terramotos na Turquia e Síria, ambos a deixarem milhões de irmãos nossos sem casa nem pão. São os aumentos de juros e o agravamento das prestações que ameaçam a insolvência de muitas das nossas famílias e até a eventualidade de terem de entregar as casas ao banco. Mobilizam-se os governantes nacionais e regionais em busca das melhores políticas para apoiar as famílias em risco de perder a casa por falta de recursos suficientes para a prestação e para o pão. Basta?”, interpela o bispo de Angra na sua primeira mensagem para a Quaresma enquanto bispo residencial da diocese insular.
A partir do itinerário cristão proposto em cada Quaresma – conversão pela penitência, oração, jejum e caridade- e tendo como exemplo o despojamento dos Romeiros Quaresmais, que percorrem os caminhos das ilhas de São Miguel, Terceira, São Jorge e Graciosa, e a caridade cristã de quem os acolhe, nas suas casas, oferecendo-lhes teto e comida, o bispo de Angra convida as comunidades e famílias entrar nesta dinâmica, lembrando que mais importante do que salientar as dificuldades é empenhar-se na resolução dos problemas.
“Estes “ranchos” somos nós e toda a humanidade ferida pelo pecado e a precisar de experimentar a misericórdia de Deus ao longo da estrada por onde a vida o leva. Uma humanidade, este ano ferida pela ideia da “casa”!”
“Caminhar juntos, com Jesus entre nós, significa estar atento a quem vai ao lado, a não o deixar caído nem só, a entender os seus gritos, a procurar ser `casa´ para ele”, afirma D. Armando Esteves.
Mas “ser casa”, diz ainda, “ não pode ser somente algo espiritual, uma boa intenção”; precisa “de ser encarnado e vivido de modo visível, com consequências para quem `abre a casa´ e quem é convidado a `entrar´”.
“Foi decidido destinar a Renúncia Quaresmal, através da Cáritas Internacional, às vítimas do terramoto na Síria. Todos sabemos o que significa um terramoto nos Açores, também o povo açoriano já foi sujeito de semelhante ajuda fraterna, até de outros países. Agora vamos pensar neles e nas suas casas e vidas a reconstruir”, pode ler-se na mensagem.
Apela-se, igualmente, a que as comunidades eclesiais – paroquiais e outras – “se organizem para escutar a dor de quem passa por dificuldades comprovadas e não consegue pagar a casa e sustentar a família”.
“Enquanto dura a crise, seria sinal de verdadeira conversão e de confiança no Evangelho que, em cada paróquia, se fizesse o levantamento possível sobre as famílias que estão em dificuldade e se desse uma ajuda monetária cada mês. Se cada paróquia o fizesse, por exemplo com 2 ou 3 famílias, por iniciativa de pessoas individuais ou com a partilha comunitária, não se chegaria a todos, mas já eram umas centenas de atingidos” afirma D. Armando Esteves.
O prelado assegura ainda que também a Cáritas Diocesana estará disponível e empenhada para complementar esta ajuda.
“Se as comunidades cristãs souberem ser esta “casa” de acolhimento, de escuta, de partilha, de caminho juntos, perceberão como responder e, caso necessário, encaminharão para os Serviços diocesanos da Cáritas. As famílias necessitadas não deveriam sentir receio em fazer presente as suas necessidades. Hoje são eles, amanhã seremos nós. Que bom seria que cada comunidade tratasse dos seus pobres! A fé e o hábito de partilhar aumentariam”, diz ainda.
“Se estivermos apenas à espera que as autoridades tratem deles, ficaremos sempre mais pobres de valores humanos e de espírito cristão” afirma D. Armando Esteves sublinhando a necessidade de se dar prioridade às pessoas e não a obras materiais, cumprindo essa utopia do Evangelho.
“Convido cada cristão da nossa diocese e em especial as famílias a uma experiência de caminho (…) para se interrogarem sobre a qualidade do amor no ambiente familiar e o grau de fidelidade aos compromissos pessoais, familiares e profissionais. Seria uma bela oportunidade para se ouvirem uns aos outros e, juntos, ouvirem o que Deus lhes pede” afirma o prelado na sua primeira Mensagem para a Quaresma na diocese de Angra.
Tendo, ainda, o capítulo 25 do Evangelho de São Mateus como tema, o prelado não evita a questão dos abusos sexuais praticados dentro da Igreja, pronunciando-se com “tristeza e vergonha” sobre um “relatório cru” que ajuda a igreja a definir com “rigor e conhecimento” estratégias futuras, que impeçam a repetição de quaisquer abusos.
“A estas vítimas, que eram menores e indefesas, peço que sejam capazes de atender o pedido de perdão que lhes faço em nome dos que nunca o quiseram fazer. Se alguém abusou, está a tempo de o assumir com dignidade aceitando as consequências. Só a Verdade nos liberta!”, afirma.
O bispo insular diz, ainda, que “a estima e a disponibilidade para apoiar nunca prescrevem, nem deixaremos que prescreva” e promete a criação de uma equipa “de leigos, profissionais de várias áreas, disponíveis para ouvir, ajudar a curar as feridas e a encaminhar quando necessário”.
“A Diocese garantirá que não faltarão meios humanos e financeiros para este esforço de acompanhamento”, reforçando a ideia de que “haverá tolerância zero”.
“Apelo a que todos se mobilizem para garantir comunidades seguras, onde os frágeis – doentes, velhinhos, menos capazes, presos, etc. – e os menores nunca sejam molestados e se sintam saudáveis e felizes. Mas depende de todos! Precisamos de estar atentos a sinais de perigo, a tudo fazer para prevenir riscos e sentirmo-nos obrigados em consciência a denunciar situações de possíveis abusos, sejam eles sexuais, de autoridade, de consciência, de liberdade, em razão do ministério ou outro”, conclui.
“Este é ainda o tempo da purificação no seio da Igreja. Qualquer desculpa ou queixume não serve. Apenas o perdão tem futuro” refere deixando, no entanto, uma palavra para o clero.
“Para todos os padres que nada têm a ver com este submundo, vai a minha palavra e abraço fraterno, encorajando cada um a olhar para este Corpo de Cristo sofredor que são as vítimas e a fixar a sua própria vida na cruz redentora de onde brotará a luz da ressurreição. É para muitos uma Quaresma em carne viva, mas para as vítimas já é uma Quaresma muito mais longa e ainda mais dolorosa”, afirma D. Armando Esteves.
A mensagem para a Quaresma, já de olhos postos na Páscoa, termina com uma palavra de esperança.
“Os olhos da fé dizem-me que a Igreja, nos tempos difíceis, sempre encontrou uma vida mais autêntica e surgiram grandes renovadores” afirma.
“A Igreja surgirá mais forte porque mais humilde, mais santa porque mais capaz de identificar os próprios limites e pecados, mais evangelizadora porque mais sincera, mais purificada, numa palavra, mais evangélica
A Quaresma é um tempo litúrgico, de 40 dias (a contagem exclui os domingos), que teve início esta quarta-feira, com a celebração de Cinzas, marcado por apelos ao jejum, partilha e penitência; serve de preparação para a Páscoa, a principal festa do calendário cristão (este ano a 9 de abril).