Pelo padre José Júlio Rocha
Boston é uma das cidades mais bonitas que conheço. E não. Não me converti ao americanismo de admirar aquelas metrópoles modelo estadunidenses, quase sempre iguais, pontiagudas no meio, com os arranha-céus espelhados dos centros financeiros e dos escritórios, descendo no “Skyline” até às fábricas, as zonas comerciais, as artérias largas e imensas e as infinitas zonas residenciais arborizadas que se espalham no verde. Vou gostar sempre do estilo europeu de cidade, que há muitos estilos, mas com uma característica em comum: o centro histórico, a “città vecchia”, o “casco viejo”, a “downtown”, a “altstadt” a “vieille ville”. Esses lugares magníficos apaixonam a minha curiosidade e, para mim, nada há mais belo do que a nossa velhinha Europa de castelos e catedrais, ruínas que contam lendas e cidades de morrer de amor.
Mas Boston tem um encanto solene e acolhedor, quando nela entramos à noite – porque é sempre à noite que entro pelo aeroporto – numa daquelas vias laterais que serpenteiam o centro, povoado de altos e discretos edifícios. Dezenas de bairros vermelhos começam mesmo ali, zonas antigas, algumas em estilo vitoriano, que dão um ar europeu àquela que é, com Nova Iorque, a ponte entre as Europas e as Américas.
Boston é a cidade universitária por excelência. Não apenas por lá habitarem nomes estratosféricos como Cambridge, M.I.T., Harvard, mas também porque a mancha urbana da cidade alberga mais de cem universidades. “Boston é uma cidade de jovens”, dizia-me o Carlos, nascido lá, filho de terceirenses, licenciado em artes. “Aposto que não encontras nessa rua ninguém com mais de trinta anos.” Quase verdade. A avenida fervilhava de juventude, atraída pela oferta cultural imensa que a cidade oferece. Atravessámos a Massachusetts Avenue e deparámo-nos com o conhecido Berklee Performance Center. A sala apinhada. Mais de mil lugares. Falava-se brasileiro por toda a parte. Sentámo-nos quase à frente, a uns vinte metros do palco, e passámos duas deliciosas horas a ouvir Adriana Calcanhotto com os seus “Devolva-me”, “Esquadros”, “Sou Eu Assim sem Você” e a sua incorrigível empatia. Todos os grandes nomes passam por Boston.
No dia seguinte, outra vez em Boston, agora para umas horas de diversão com o amigo Carlos. Entrámos no mítico Fenway Park para assistir ao superclássico do basebol americano: Boston Red Sox contra os New York Yankees. Quando lá entrei ainda percebia um pouquinho de basebol…
Os adeptos misturam-se, sem tensões, sem cânticos. Conversam, riem, comem pipocas e bebem sodas açucaradas, dançam para serem filmados nos catorze ou quinze intervalos de dois minutos e meio de um jogo de quatro horas. Não há a tensão agónica dos nossos clássicos, nem as alcateias de adeptos separadas para não se comerem vivas; também não há o bruá da oportunidade falhada, a explosão incontida do golo, a persistência estonteante dos cânticos. Ali o povo vai divertir-se e amanhã há mais. É esta a filosofia.
Nos arredores do centro financeiro, naquelas ruas mais afastadas de quase tudo, vão pululando os sem-abrigo. São muitas dezenas naquele lugar esquecido. Imagens de mortos-vivos, despedaçados por dentro e deformados por fora, à procura, pela meia manhã, da ponta do último cigarro de heroína com que adormeceram na noite anterior, a pararem nos semáforos à procura de uma mão que nunca se estende. Muitos são negros, orientais, hispânicos. São fantasmas que não dormem nem acordam. São uma ferida, mais uma, no coração dividido da América. Há um elefante na sala, gigante, e ninguém fala dele. É a política que espartilhou os americanos em dois mundos antípodas. E diante dos espetáculo arrepiante dos sem-abrigo que enchem as ruas de papelão, cobertores, restos de comida e sujidade, há aqueles que os consideram uma nódoa na limpeza das cidades, uma caterva de parasitas que chegaram àquele ponto miserável porque nunca quiseram fazer nada e o Estado dá-lhes tudo para o vício. Há também aqueles que os acham simplesmente vítimas desta sociedade feroz de consumo. E há ainda um terceiro grupo: os que se abstém de opinar e babar sentenças e arregaçam as mangas e ajudam aqueles seres humanos a terem alguma comida, algum abrigo, alguma limpeza, alguma dignidade. Esses são poucos.
Os eternos temas quentes da sociedade americana extremaram-se: o aborto, as armas, o aquecimento global, a invasão da Ucrânia, a imigração, o ObamaCare, o racismo, a questão da identidade de género, a inflação. São as guerras surdas que os canais de televisão, de rádio, as linhas editoriais dos jornais, as redes sociais deram uma amplitude inaudita. Grande parte dos americanos vive na “bolha cognitiva” daquilo que quer ouvir. Tudo o que sai dos canais inimigos é “fake”.
A verdade é que a bipolarização social, visível também na Europa, leva a decisões que nos parecem difíceis de entender. Há poucos dias, um estudo revelou que mais de 1600 livros foram proibidos em cerca de cinco mil escolas dos Estados Unidos, no ano letivo de 2021-2022. Não é por aí que o gato vai às filhoses, até porque entendemos que há idades para ler certos livros e há livros especificamente desadaptados a crianças e adolescentes. O que me espantou no meio disso tudo é que cerca de 60% desses livros proibidos, quase todos romances ou novelas, são-no por apresentarem personagens principais de cor negra ou por abordarem o tema do racismo… aqui, a irracionalidade já assusta.
Convenhamos que a América é um mundo inteiro. As “Califórnias perdidas de abundância”, cantadas por Pedro da Silveira, atraíram metade das nossas famílias, que lá tiveram as oportunidades que aqui nem se cheiravam. Boston é o símbolo desta América de braços abertos, de sotaque irlandês, sem os ghettos de Nova Iorque, sem os muros do Texas, sem as praias da Flórida ou os vales da Califórnia. Ali habita o mundo todo em pouco espaço.
Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio