Pelo padre José Júlio Rocha
Hoje chove escuramente. Um vento cavernoso e distante sopra com fragor sobre as árvores e o mar. Há um barulho fundo, lúgubre e prolongado a espalhar, de lés a lés, o bater da tempestade. Estes dias trazem à superfície a nossa açoriana tristeza, esse doce estilo de vida tão marcadamente nosso, tão acostumado a ventos, chuvas, nevoeiros. É nosso o verde brilhante das colinas e das pastagens, o azul ferrete do mar. Também o cinzento, nos outonos húmidos, esse cinzento da bruma que nos adivinha horizontes de que nunca tivemos medo.
Enquanto o “nobre povo” fixou-se pela Metrópole, os “heróis do mar” aventuraram-se em naus e caravelas pelo mundo afora e também por aqui. Somos descendentes daqueles homens que, mais do que quaisquer outros, não tiveram medo do mar. Somos pessoas estranhas. Um povo estranho. Olham para nós com a curiosidade de quem vê uma espécie rara, meio selvagem meio poética, meio nómada meio resignada, completamente moldada pela natureza. Vulcões e terramotos fizeram da nossa a história mais atribulada da História de Portugal. Vila Franca foi subterrada, subvertida, como se diz; a Praia caiu três vezes; Angra desabou em 1980; não há terra, freguesia, lugarejo que não tenha conhecido uma erupção assustadora, um abalo devastador. E regressámos sempre, refizemos, recomeçámos, neste movimento circular de vida, onde avançamos para chegar, quase sempre, ao mesmo lugar.
Os açorianos tiveram um palmo de terra para nascer, o mundo inteiro para morrer. Alguns foram ficando, muitos, demasiados partiram para o Brasil, as Américas, o mundo, levando consigo estranhos costumes, como o de chamar Imperador a uma criança pobre que, numa missa, recebe na sua cabecinha a coroa mais sagrada de todas as coroas. Sacrificamos bezerros enfeitados e corremos à frente de toiros; dançamos, cantamos, fazemos um teatro único pelo carnaval e somos detentores das mais belas canções de saudade que o mundo conhece; andamos a volta à ilha de São Miguel em grupos de homens, curvados pelo peso da viagem, a entrar nas igrejas e a descansar nas casas amavelmente acolhedoras, numa romaria circular, que chega sempre ao mesmo lugar de onde partiu e amamos como ninguém o Espírito Santo, suma manifestação da alegria pascal.
Enfrentámos o homem mais poderoso da Terra e mandámo-lo à sua vida com um heroico “antes morrer livres que em paz sujeitos”. Envergonhámos despudoradamente Filipe II, o Pio, o senhor do mundo, numa batalha em que mulheres e toiros foram protagonistas.
Ao longo dos séculos fomos inventando maneiras de não ser pobres: caravelas, naus e armadas fundearam nos nossos portos, produzimos laranja para a Inglaterra, vinho para os czares, e, quando a desgraça chegava, inventávamos estratégias de sobrevivência: o ananás, o chá, o tabaco, o vinho, a beterraba, a oliveira, a vaca, o turismo. E continuamos a ser pobres, os mais pobres, aqueles cujos índices de bem-estar parecem não sair do fundo da lista. Talvez seja tudo isso, pobreza, solidão, adversidade, saudade, sorte ou azar que fazem de nós os poetas e os cantores que somos.
Ninguém é como um açoriano.
Somos religiosos? Somos supersticiosos? Há de tudo, mas uma coisa é certa: até os ateus são devotos do Espírito Santo. Nada se nega a quem pede em nome da Terceira Pessoa.
Bairristas o quanto baste, podemos perguntar-nos o que nos une, qual é a nossa identidade, o que faz de nós açorianos, nessa distância de Santa Maria ao Corvo onde impera o mar profundo. Talvez a nemesiana açorianidade seja um pedaço de resposta: “Somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar.”
É esta terra longe de tudo, onde quase todas as ilhas estão quase sempre longe, são estes vulcões espalhados em diagonal por sobre a dorsal atlântica, é este arquipélago tão longe da Metrópole que nem aparece nos mapas de conveniência que se prepara para novos caminhos.
Depois de um ano, longo como a longitude, viemos a saber da eleição do novo Bispo da Diocese de Angra. Filho de Castelo Branco, sacerdote em Viseu, Bispo auxiliar no Porto, a nova tarefa de Dom Armando Esteves Domingues é uma verdadeira missão. Já nos disse mais do que uma vez que a sua primeira tarefa passa por conhecer a nossa terra: “Como não conheço a diocese, o primeiro desafio será conhecer-vos e dar-me a conhecer. Não se caminha com quem não se conhece”. E, mesmo ainda não nos conhecendo, não se coibiu de proferir umas palavras que dizem mais dele do que de nós: “Angra é já para mim a mais bonita de todas as dioceses do mundo, pela sua natureza de uma beleza ímpar, mas também pelas pessoas, porque já são “minha gente”, “minha família”!”
Não conheço pessoalmente Dom Armando Esteves Rodrigues. Admiro-o há muito. A nossa tarefa agora, de açorianos fiéis a si mesmos, é abrir-lhe os braços, acolhê-lo e pôr as mãos à obra numa Igreja sinodal.
Continua a chover e o vento ainda ruge com bruteza. Apesar disso e, talvez mesmo por causa disso, somos uma terra estranhamente bela com pessoas estranhamente acolhedoras. Bem-vindo, Dom Armando.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.