Pelo padre José Júlio Rocha
De Jerusalém para Emaús o caminho de duas léguas é sempre a descer. Emaús é um povoado quase nulo, insípido, sem horizontes. Uma dúzia de casebres velhos e tristes, cabras na vizinhança, atraso de vida, uma aldeola que fica a dez metros da placa que diz “fim do mundo”. Quem nasce em Emaús não sonha, sobrevive. Já tem o seu destino traçado: nascer e crescer entre cabras, casar com a vizinha e ter filhos, passar a vida a cuidar de cabras até que se morre e se é enterrado algures entre cabras. Emaús é o símbolo dos lugares sem sonhos nem ambições, quem lá vive não sabe, nem quer saber, o que é o mundo. Jerusalém, o monte do Templo, é o oposto de Emaús.
Aqueles dois homens, um deles chamado Cléofas, estavam destinados a nascer e morrer lá, crestados pelo sol duro dos dias vãos, na monotonia de uma vida cujo sentido se esgota no cuidar das cabras, das ovelhas, de nada. Até que ouviram falar do nome de Jesus. Um profeta que dizia coisas novas numa linguagem nova, que falava que Deus era amor e que os homens eram todos irmãos, que curava com um toque, com uma palavra, que não tinha lugar onde reclinar a cabeça porque a Sua casa era o coração dos homens.
Entusiasmados, deixaram Emaús pelas costas e subiram à Galileia, à procura desse homem misterioso e fascinante. Deixaram para trás o buraco onde tinham vivido até então e foi então que começaram a viver a sério. Os anos que partilharam com Jesus, esses momentos únicos, foram uma aventura extraordinária e inabalável de partilha, aprendizagem, oração, milagres. Jesus era o Messias? Sim, era. Aderiram a Jesus de corpo e alma, como se bastasse – e bastava – entregar tudo nas Suas mãos e a vida fazia sentido.
Tudo desabou numa sexta-feira, nos arredores de Jerusalém, no cimo de uma colina onde se delineavam três cruzes destinadas à morte dos infames. Jesus, o Messias anunciado pelos profetas, morria da forma mais escandalosa, agonizando diante de quem O quisesse ver, de braços abertos à chacota do mundo. Tudo terminara. Morria estrondosamente o sonho. A última solução para Cléofas e o seu companheiro era desistir. E regressaram a Emaús.
De Jerusalém para Emaús o caminho é sempre a descer… é tão fácil desistir, tão simples virar as costas ao sonho, tão normal regressar à apatia dos dias sempre iguais, sem compromissos, sem aspirações, sem felicidade nem tristeza. É tão fácil regressar ao vazio de Emaús com as suas cabras e ovelhas… Foi só deixar o corpo descer encosta abaixo até ao fundo do poço.
Às tantas acontece um homem estranho a caminhar ao seu lado. O coração aquece-lhes, mas não o suficiente para regressarem a Jerusalém. Não reconhecem aquele homem misterioso. Por coincidência, quando chegam a Emaús vem caindo a noite. Na terra e nos seus corações. Era isto que queriam? Voltar à mesma vida, aos mesmos dias sempre iguais, a essa desesperança sem dores nem alegrias, a essa condição de mortos-vivos? Quando morre um grande sonho o que é que nos resta senão uma espécie de vazio de uma vida sem sentido?
Um deles clama ao homem estranho: “Fica connosco, senhor, porque anoitece”. É um grito de socorro. Anoitece na vida, na alma, e anoitecer é morrer um pouco. O homem ficou, partiu-lhes o pão sobre a mesa e eles reconheceram Jesus. De Emaús a Jerusalém o caminho é sempre a subir, mas Jerusalém é a vida, Jesus vive e é a vida. Para quê Emaús? E, nessa mesma noite, que se tornou dia, chegaram a Jerusalém. A vida valia a pena e o sonho, afinal, como todos os grandes sonhos, ressuscitou.
Não se parece a nossa vida cristã com a história desses dois homens? Quantas vezes já estivemos tão perto de Jesus que pensámos nunca mais nos afastar? Quantas vezes já descemos à nossa desmotivada e triste Emaús? Quantas vezes alguém, talvez um Jesus disfarçado sei lá de quê, nos fez aquecer o coração mas não o suficiente para regressarmos?
Jesus é um nómada. A Sua casa somos nós. A partir do momento em que encontraram Jesus, Ele nunca mais deixou aqueles dois homens. Mesmo que regressassem às cabras, Jesus estaria lá.
A Igreja nasce do lado aberto de Jesus. Mãe e Mestra, e tirando-lhe os seus muitos pecados e erros, a Igreja, na sua pureza evangélica, é um poema de Deus para os homens. Imitar os passos, os gestos, o amor de Jesus é o seu desígnio inabalável. É sua missão estar ao lado, acompanhar, ensinar, abraçar e partilhar o pão. É também sua missão compreender que não é a força que muda os desígnios de Deus mas a fragilidade do homem. E a Igreja é feita de homens.
Um desses homens chegou. Trazia consigo a larga bagagem da esperança. Dom Armando Esteves Domingues é o novo rosto de Jesus que a Igreja oferece à Diocese de Angra. De um bispo espera-se a mão bondosa de um Pai, o amor e a proximidade de um Filho, a frescura da brisa suave de um Espírito Santo. E que nos ajude a não descer mais à nossa tentadora Emaús da resignação estagnada. O caminho é sempre a subir.
A nós, compete-nos reconhecer, nos seus passos, os passos de Jesus.
Dom Armando: estamos prontos para continuar a subir consigo todas as encostas que a fé e o amor nos oferecerem. E – sabemo-lo bem – não ficaremos desiludidos.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio