E lá se foi o Carnaval na ilha Terceira, com as suas danças e bailinhos, levando consigo, a passo lento, três ou quatro dias de nevoeiro teimoso e denso, daqueles em que mais vale nadar do que andar a pé.
O nevoeiro é nosso vizinho de porta. Respeitador, porque não entra pela casa dentro, mas insistente. Se abrimos a porta de manhã e ele lá está, fazemos cara de sete palmos. Mas ele fica, horas, até dias, em frente da nossa porta, baço demais para espelho, seco demais para piscina caseira, húmido demais para ser dia. As ilhas são ilhas porque estão rodeadas de mar por todos os lados. Nós vivemos em mais-que-ilhas: por todos os lados e, muitas vezes, por cima. O nevoeiro é um mar, um oitavo oceano, que esconde o céu e que, por isso, o faz mais belo para nós. Nesses dias, estamos mais sós do que nunca.
Numa noite de nevoeiro, vinha eu no meu automóvel, da Praia para Angra, ali por perto do Campo de Golfe. Já lá vão seguramente uns bons 19 ou 20 anos. Faróis de nevoeiro acesos, a perscrutar o mundo para lá das gotículas de água, da chuva miudinha, da noite calada. Parado na berma estava um carro. O dono do lado de fora, de pé, a pedir ajuda. Tinha-lhe faltado o combustível! Enquanto o trazia à bomba mais próxima, reparei nas suas barbas grisalhas, um pouco raras, a escorrer pala cara e queixo abaixo, a água a escorrer por elas. Uma boca triste, com rugas de tristeza e abandono pelos cantos fora, acostumada à tristeza como a uma segunda pele. Óculos a tender para fundo de garrafa tapavam uns olhos humildes, escondidos no fundo das órbitas, das lentes, das gotas de chuva nas lentes, uns olhos que aprofundavam e ofereciam uma dimensão bondosa à tristeza dos cantos da boca.
Era alto, para o desengonçado, daquelas criaturas que, normalmente, encontram dificuldades em saber onde colocar as mãos, não pelo tamanho das mãos, mas pelo tamanho da solidão que, involuntariamente, se transmite aos gestos de cada dia.
Dois dedos de conversa e ele já conhecia meu pai, um dos meus irmãos de quem fora colega, e as mãos já sabiam onde se meter. Era professor, tinha conseguido o curso tardiamente, com imensa dificuldade, muito mais velho que os colegas, o dobro do tempo para o curso. Tinha cara de quem sabe que se riem dele pelas costas, nas palavras mais subtis, quando ele não percebe ou finge não perceber. Presumi a angústia deste homem diante de uma turma, a ensinar a sua matéria, a pedir “por favor, por favoooooor”, aos alunos que estivessem atentos, que não fizessem barulho, que não mandassem bocas, que não lhe escondessem os livros… E, depois do calvário das aulas, o regresso a casa, qualquer coisa alugada, outro calvário, onde havia de remoer essa condição de não pertencer a ninguém, longe da família rara (acho que era beirão) longe como só o nevoeiro nos põe longe.
Nesse vai-e-vem, tivemos tempo de sobra para conversar e ele lá me contou pedaços de toda a sua história. Precisava. Aos quarenta e tal anos, com a mãe e dois irmãos para lá do nevoeiro, não era fácil, não era fácil… e o repetir do “não era fácil” adivinhava quilómetros e quilómetros de nevoeiro espesso por dentro dele. No fim, depois de ligar – enfim – o motor da carripana velha, lá me disse, como se lhe cortasse a alma dizer: “por favor, amigo (amigo talvez quisesse dizer “socorro”), não conte isto a ninguém…” quase como quem vai chorar a seguir, como se aquele vexame fosse mais um rabisco na figura ridícula que ele desenhava de si para os outros. Há coisas que só acontecem a certas pessoas: as que nos fazem rir delas. Usar gravatas verdes com casacos amarelos; sujar-se, à mesa, vergonhosamente, com o vinho ou o molho; rir quando ninguém ri; ser o único a quem rebenta o guarda-chuva em dias sem vento; cair em todas as esparrelas; rir-se porque os outros riem; falar sozinho.
Todos temos gente dessa na nossa vida, na nossa casa, quando não somos, nós próprios, dessa gente. Eles nunca nos ofendem, só nos chateiam, às vezes. Podemos dizer-lhes o que quisermos, como quisermos, podemos rir deles com os amigos, que os amigos são para as ocasiões. Eles nunca nos vão dizer que ficaram ofendidos, ou que choraram ou que uma simples e ligeiramente maliciosa frase nossa lhes tirou o sono por uma noite inteira.
É por isso que pedir perdão é tão importante como perdoar. Talvez mais.
Quanto a esse homem sem nome, acho que despistei suficientemente o leitor para nunca chegar a saber quem é… de contrário, estaria a contrariar o seu último, fervoroso, pedido. E a ser mais um dos que riem dele, sobretudo para não rirem amargamente de si.
Pe. Júlio Rocha