Pelo padre José Julio Rocha
O tio José Caneco era o homem mais gordo da Fonte do Bastardo. E, provavelmente, o mais bondoso. Mas toda a criançada da freguesia e arredores tinha um medo medonho do tio José. Dizia-se que a sua barriga estava cheia de rapazes que ele comia ao jantar. Não sei de onde lhe veio esta fama terrível. Provavelmente alguma mãe, cujo filho desdenhava a sopa, o ameaçou com o conteúdo da barriga do Tio José Caneco se ele não comesse tudo. Terá sido um sucesso e a mãe deve ter contado às vizinhas e às paroquianas no adro da igreja, que a imitaram. E a fama de canibal medonho do pobre e honrado homem espalhou-se.
Recordo-me de, um dia, quando ia a casa dos avós pela mão do meu irmão mais velho, ter visto o tio José Caneco ao dobrar de uma esquina: foi o terror. Desatei a fugir aos berros, com os calcanhares a baterem no rabo, a correr para o colo de minha mãe.
Cresci. Vi o ridículo de tudo aquilo, sobretudo depois conhecer a personalidade do Tio José Caneco, cuja grandeza da barriga não se comparava à grandeza da sua bondade e simpatia. E pensei muitas vezes: “o que fizemos do tio José Caneco! Como deturpámos a sua imagem! Como deve ele ter sofrido com tais injustiças…”
Passando para um plano teológico, foi mais ou menos isso que fizemos a Deus. Criámos imagens de Deus à medida do nosso ressentimento. Um Deus férreo, amigo da dor e do sofrimento, distante e autoritário, capaz das maiores atrocidades para que se fizesse a Sua vontade.
Nietzsche declarou a morte de um deus, não de Deus. Nascido de uma linhagem de pastores protestantes, o filósofo alemão foi implacável ao denunciar a imagem de um deus pesado, envenenado de pessimismo, como era anunciado nos sermões moralistas da época. Uma “moral de escravos”, transida de uma culpa por nós termos matado o próprio Deus numa cruz, uma culpa jamais aplacada, porque matar Deus mantêm-nos numa dívida insuportavelmente eterna.
Não tenho a menor dúvida da poderosa dose de responsabilidade dos cristãos no ateísmo ocidental. O nosso século XIX foi particularmente desastroso. Anatemizámos quase tudo o que fosse progresso e desenvolvimento, democracia e alguns direitos humanos fundamentais. Receámos a mudança, o mundo moderno. Em nome de Deus condenámos a vacina: “quem quer que recorra à vacina deixa de ser filho de Deus. (…) A varicela é um juízo de Deus. (…) A vacina é um desafio lançado ao céu.” Salvo raras exceções, não denunciámos a maior tragédia do século XIX, a “questão operária”, quando milhões de seres humanos eram triturados e escravizados nas máquinas da revolução industrial. Infelizmente, muito infelizmente, não fizemos o nosso lugar, não seguimos os passos de Jesus, não denunciámos as injustiças medonhas… oferecemos, de mão beijada, essa tarefa a Karl Marx. Perdemos os pobres, que se sentiram abandonados por Deus. Perdemos os ricos, que, na sua opulência, não precisavam de Deus. Aburguesámo-nos e aburguesámos a imagem de Deus. Não. Desta peleja ninguém sai imune.
Perante a tragédia desta pandemia, evidenciam-se três atitudes: a dos ateus, que dizem que, afinal, Deus não existe mesmo, porque, se existisse, não permitiria que os seus filhos passassem semelhante prova; a dos que têm uma fé fundamentalista, com resposta para tudo, que dizem que tudo isto é um castigo ou, pelo menos, um aviso de Deus; a dos verdadeiros crentes, que se apercebem que o mistério de Deus é insondável, que compreendem que o nosso tempo não é o tempo do Eterno, que o que distingue a verdadeira fé é, como dizia Halík, a paciência com Deus, que compreendem que, de alguma forma, nós somos os braços de Deus neste mundo.
Fico profundamente incomodado com os disparates que se dizem a respeito da Igreja, de Deus, da fé. É, no entanto, com muita perturbação, que reconheço algum fundamento em alguns disparates: a imagem de um deus padrasto e não Pai.
Não é esse o Deus que Jesus Cristo veio anunciar. Foi o Deus Pai, Misericordioso, que espera, no alto do terraço da vida, o regresso de todos os filhos pródigos para os abraçar. E nós, os cristãos, não podemos continuar na pele do filho mais velho.
*Esta crónica foi publicada na edição de sexta feira do Diário Insular, na rúbrica Rua do Palácio